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Raros foram os momentos em que, coletivamente, precisamos tanto de esperança e persistência como na aurora de 2021. A pandemia da covid-19 acentuou desafios preexistentes e desencadeou crises muito além da sanitária: na economia, no mercado de trabalho, nas relações sociais e, talvez a mais grave delas, na educação.
No primeiro semestre de 2020, a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) chegou a indicar que 1,3 bilhão de estudantes estavam sem aulas presenciais em função do fechamento das escolas. Em todo o mundo, poucos países reabriram totalmente as instituições de ensino e muitos tiveram que fechá-las novamente (ou o farão em breve), com o intuito de controlar a “segunda onda” de contágio. O debate sobre abrir ou não escolas rapidamente se dividiu em polos antagônicos, quase irreconciliáveis, sobretudo na América e na África. Ao menos na esfera do debate público, deu-se mais atenção ao fechamento ou a abertura das escolas do que ao desafio mais sério: qual o plano estrutural (em oposição à resposta emergencial) para lidar com os efeitos amplos, profundos, duradouros e desiguais da pandemia sobre as aprendizagens dos estudantes?
Embora as componentes programáticas desse plano estrutural possam diferir entre os sistemas de ensino, há um imperativo comum a todos, que pode ser resumido em uma palavra: produtividade. Este termo, usualmente rejeitado por educadores e militantes educacionais, deve ser o norte das ações de todos os agentes realmente preocupados com o presente e o futuro dos estudantes. No caso do Brasil, precisamos urgentemente aumentar a produtividade de cada turma, de cada escola, de cada rede de ensino e, por conseguinte, de todo o sistema educativo nacional. E devemos fazer isso perseguindo equidade ao mesmo tempo, até porque trará ganhos de produtividade ainda mais rápidos.
Em teoria, produtividade não deveria ser um palavrão. Na termodinâmica, significa apenas produzir mais trabalho (energia) enquanto se gera menos calor. Na vida das pessoas mais pobres, constitui tarefa cotidiana: produzir mais (comida, moradia, transporte, remédios etc.) com os mesmos recursos (ou com menos). Pois é assim que se anuncia o ano letivo de 2021: um ano em que todos teremos de gerar mais produtos com menos insumos, em que precisaremos gerar mais resultados usando os mesmos ou um volume menor de recursos.
Sem um aumento sustentado da produtividade de nossa educação, não alcançaremos resultados melhores para alunos, para profissionais da educação ou para o país
Primeiro, haverá menos tempo, porque há um ano quase inteiro a recuperar, dado que a virtual totalidade das redes de ensino brasileiras não retomaram aulas presenciais ao longo de 2020. Por exemplo, a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro adotou o ambicioso e possivelmente inalcançável slogan “2 anos em 1”. Tempo é um fator crucial em todo processo e, em particular, na educação, cujos conteúdos obrigatórios são organizados tendo como referência o ano com 200 dias letivos. Ademais, o próprio processo de aprendizagem é gradual e cumulativo; é incomum, quando não impraticável, “pular etapas”. Será necessário pensar em uma recuperação das aprendizagens perdidas (ou não alcançadas) ao longo de um período superior a apenas um ano. Quanto tempo isso levará, por sua vez, dependerá da produtividade dos sistemas de ensino.
Segundo, é provável que haja menos orçamento. Os estímulos fiscais de 2020 dificilmente se repetirão, a economia não recuperará todas as perdas registradas no ano passado, e os sistemas de ensino incorrerão em gastos adicionais, tais como os derivados da aplicação de protocolos sanitários, contratação e operação de soluções de educação remota, operação em contraturno escolar, migração de alunos vindos da rede privada. Ainda no campo orçamentário, paira no ar a ameaça de aprovação da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) do Pacto Federativo, que unifica os pisos constitucionais de gastos em saúde e educação. Se aprovada, é muito provável que parte dos investimentos em educação migrem para a saúde, ainda mais durante a pandemia.
Terceiro, é possível que haja menos professores disponíveis para todas as atividades escolares necessárias. De um lado, enquanto não houver vacinação em massa, é improvável que retornem às aulas presenciais os docentes que pertencem aos grupos de risco. E eles são muitos — dos mais de 2 milhões de professores da educação básica, 80 mil têm mais de 60 anos de idade e quase 500 mil estão acima dos 50 anos, faixa etária de maior prevalência de doenças crônicas. Por outro lado, dado que muitas redes têm acenado com atividades em contraturno e/ou com turmas menores, que assegurem o distanciamento social intraclasse, será preciso contratar professores. Haverá recursos financeiros? Eles terão as qualificações necessárias para o exercício docente? Receberão capacitação de forma adequada e tempestiva? Como poderemos usar melhor o tempo dos professores, liberando-os de atividades de baixo valor, para que se concentrem em abordagens crescentemente personalizadas de ensino? A questão docente — recrutamento, seleção, treinamento, remuneração e avaliação — tem de ser a prioritária em qualquer plano estrutural, porque não há como falar em aumento de produtividade educacional sem docentes motivados e competentes.
Quarto, como discutimos em coluna anterior , tampouco os alunos estarão no mesmo patamar. Serão grandes as perdas de aprendizagem decorrentes da suspensão das aulas presenciais e da ineficácia relativa de algumas soluções emergenciais de educação remota. Para além delas, é possível que muitos estudantes estejam desmotivados, desacostumados com o ritmo das aulas presenciais e/ou enfrentem dificuldades com sua saúde mental. Com relação a este último desafio, cumpre mencionar que simples medidas de acolhimento serão insuficientes. O país precisa discutir o desenho e a implantação de um programa de apoio à saúde mental das comunidades escolares — profissionais da educação, estudantes e seus pais/responsáveis.
Por fim, há um efeito perverso que pode aumentar a produtividade interna dos sistemas de ensino e até mitigar os desafios anteriores, sejam eles orçamentários ou de pessoal. Mas este efeito representaria efetivamente uma derrota das redes educativas e, portanto, uma diminuição de seu valor agregado para o país: o aumento da evasão escolar, já apontado como um dos maiores riscos na esteira da pandemia. Com menos alunos, o investimento per capita subiria e menos professores precisariam ser contratados ou colocados em risco com o retorno das aulas presenciais. Mas, obviamente, ninguém pode torcer por esse cenário e evitar que ele se concretize é uma das mais importantes tarefas que gestores educacionais têm neste momento de preparação para o início deste ano letivo.
Do ponto de vista de um economista, esses são alguns dos principais elementos que compõem a produtividade dos sistemas de ensino. O resultado que se busca a partir do equacionamento deles é um número cada vez maior de alunos matriculados, sem atrasos em seu fluxo e com rendimento escolar crescente. E isso precisa e pode ser feito com foco privilegiado nos mais pobres e com piores rendimentos escolares. Com o tempo, os resultados serão convertidos em maior escolaridade e maior consciência e ação cívica da população, melhoria da qualificação para o trabalho, redução dos comportamentos de risco da juventude etc. Esta é a agenda do desenvolvimento nacional — sem um aumento sustentado e contínuo da produtividade com equidade de nossa educação, não alcançaremos resultados melhores para alunos, para profissionais da educação ou para o país. É na discussão dos componentes programáticos e das evidências sobre como melhorar a produtividade da escola que as próximas colunas enfocarão. Espero que o leitor nos acompanhe e que tenha um feliz ano novo!
João Marcelo Borgesé pesquisador do Centro de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas. Foi diretor de Estratégia Política do Todos Pela Educação (2018-2020), Consultor Sênior e Especialista em Educação do Banco Interamericano de Desenvolvimento (2011-2018), além de ter ocupado cargos de direção no governo do estado de São Paulo e de gerência no Ministério do Planejamento. Idealizador e cofundador do Movimento Colabora Educação, é mestre em economia política internacional, pela London School of Economics, onde estudou como bolsista Chevening, do governo do Reino Unido.
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