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Alicia Kowaltowski

Meio milhão de mortos e a busca por cientistas contra a ciência

16 de junho de 2021

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No distópico Brasil da pandemia, as opiniões minoritárias ganharam voz não apenas por meio das mídias sociais, mas também pelo apoio e pela difusão de grupos bolsonaristas organizados

O senador Eduardo Girão ganhou atenção nas mídias sociais com a notícia falsa de que ele teria afirmado recentemente que a CPI da pandemia “precisa ouvir cientistas que são a favor e também os que são contra a ciência”. A fala, que nunca chegou a ser dita por Girão durante as sessões da comissão, viralizou entre meus colegas pelo óbvio absurdo de se sugerir que existem “cientistas contra a ciência”.

Seria minimamente estranho exigir que se procure cientistas que são contrários à ciência para demonstrar abertura a debates em discussões científicas, assim como seria bizarro pedir que se encontre agrônomos contra a agricultura, ou médicos contra a medicina. Mas, numa inversão de valores que caracteriza a gestão, é exatamente isso que aparenta ter sido o foco do governo federal. Esta administração indica ministros da Educação sem educação, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que é excludente dos direitos de muitas famílias e humanos, e ministro do Meio Ambiente focado na destruição de nosso patrimônio natural. Não se limita a ter ministros da Saúde cujo maior qualificador é se dobrar aos desejos e mandos da presidência, enquanto ignoram a saúde. Vai além, criando um ministério paralelo para garantir melhor aderência à estratégia inconsequente de se manter uma pandemia sob total descontrole.

Se olharmos os integrantes e consultores do tal ministério paralelo, perceberemos que alguns se parecem bastante com cientistas. Possuem posições acadêmicas, até mesmo em instituições de renome, como aquela em que eu atuo. Publicam trabalhos acadêmicos, e têm títulos compatíveis com o rótulo de cientista. Em minha definição do termo, não o são, pois não respeitam o método científico, baseado em evidências, testagem de hipóteses, consensos e adaptação sempre que surgem melhores evidências. Mas entenderia perfeitamente se uma pessoa sem conhecimento específico da área se convencesse com esses históricos, e assim acreditasse nas suas afirmações anticientíficas. É aqui que seria importante o papel das instituições , que em teoria congregam as opiniões dos grupos que representam e apresentam o melhor conhecimento conjunto do momento. Infelizmente, no Brasil da pandemia, as instituições nos falharam completamente. O Ministério da Saúde é domado pelo presidente, e ainda subjugado pela assessoria paralela, enquanto oConselho Federal de Medicina, lastimavelmente, atua de forma hipócrita e nada hipocrática .

Um estudo da sociedade americana de medicina demonstra que nos EUA, onde há amplo acesso às vacinas contra covid-19, 96% dos médicos estão completamente vacinados (contra 43% da população geral). Dos 4% restantes, quase a metade tem a intenção de vacinar ou completar a vacinação. Não duvido que dentre os 2% restantes haja médicos praticantes americanos que são contrários ao uso de vacinas. A existência de “médicos contra a medicina” é possível pelo simples fato de indivíduos humanos serem muito diversos. Mas sabemos também que são pouquíssimos, e que sua atuação seria sem consequências se não tivessem voz através das mídias sociais, usando a ciência para negar a ciência .

No Brasil da pandemia, as opiniões minoritárias distopicamente ganharam voz não somente pelos caminhos informais das mídias sociais, mas também apoio e difusão por meio de grupos bolsonaristas organizados. O Brasil da pandemia procurou os raros anticientistas com credenciais aparentemente científicas e amplificou sua voz, de modo que as ações coletivas do governo federal foram exatamente o contrário do que é internacionalmente e cientificamente recomendado.

Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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