Coluna

Alicia Kowaltowski

Quer liberdade, sr. ministro? Vacine as crianças! 

15 de dezembro de 2021

Temas

Compartilhe

Um futuro com menos contenção de aglomerações, uso de máscaras ou outras medidas sanitárias depende de mais pessoas vacinadas 

Ao discutir a recomendação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) de se adotar passaporte vacinal para ingresso no país, o ministro da Saúde Marcelo Queiroga demonstrou novamente ser seguidor irrestrito do presidente Bolsonaro ao surrealmente afirmar que “às vezes é melhor perder a vida do que perder a liberdade”. Seu uso do bordão “liberdade” contra o passaporte vacinal é tão inadequado que remete ao infame “Arbeit macht frei” (o trabalho liberta, em tradução livre), marcando entradas de campos de concentração nazistas. Queiroga é médico, mas aparentemente ignora a ética e esqueceu o juramento hipocrático , que não permite que filiação política interfira na atuação em saúde.

O argumento falho apontado por bolsonaristas contra o passaporte vacinal é o de que pessoas vacinadas podem se contaminar e carregar o vírus. Esse sofisma ignora que epidemiologia, a especialidade médica em que se baseiam políticas públicas de saúde, estuda populações, não indivíduos. Uma pessoa vacinada pode carregar o vírus, mas a probabilidade é bastante menor que não-vacinados. Adicionalmente, se esta pessoa vacinada se contamina, por ter carga viral reduzida e mantê-la por menor tempo, a probabilidade de contaminar pessoas no seu entorno também é diminuída. Vacinados possuem, adicionalmente, muito menor probabilidade de terem doença grave e sobrecarregar o sistema de saúde. Deste modo, por uma somatória de riscos retraídos, a população inteira está cada vez mais protegida à medida que aumenta a proporção de vacinados. Não há intenção do passaporte vacinal de se impedir a entrada de variantes no país – a presença da ômicron em países com controle muito restrito de fronteiras como Austrália e Japão comprova que esta meta é inatingível – o objetivo é diminuir a circulação do vírus através de uma rede de ações que coletivamente reduzem sua transmissão. Afortunadamente, e entendendo esta necessidade melhor do que o ministro-médico, o ministro do STF Luís Roberto Barroso tornou o passaporte vacinal obrigatório , prevenindo assim que o Brasil vire destino de turistas antivacina.

Precisamos lembrar sempre que a vacinação é um ato coletivo: para muito além de tomarmos vacinas para nos proteger individualmente, as tomamos como comunidade, para proteger todos no nosso entorno. Além desta responsabilidade com a saúde, o ministro Queiroga deveria entender que promover a vacinação no Brasil é uma boa estratégia política. O brasileiro provou que quer, e muito, se imunizar. A intenção brasileira de se vacinar está entre as maiores do mundo, certamente produto de uma política de décadas de programas de imunização pública. Em São Paulo, outdoors proclamam a cidade “capital mundial da vacina”. Não sei qual é a métrica usada para esta afirmação, mas a realidade é que os índices, a despeito da falta de uma coordenação e campanha nacional ou obrigatoriedade, estão muito bons: praticamente 100% da população acima de 12 anos no estado tomou ao menos uma dose, e 95% dos adultos estão completamente vacinados. O restante do país segue um pouco aquém destes números, mas também mostra não ter massa significativa de recusas da vacina. Até mesmo os bolsonaristas, na sua maioria, se vacinaram, apesar das atitudes do seu líder político.

Dada a avidez brasileira pela imunização, Queiroga deveria perceber que promover vacinação é politicamente conveniente. Precisamos ainda vacinar os brasileiros reticentes e fazer campanha para completar a segunda dose, mas com os índices atuais, a maneira mais impactante de aumentar a cobertura vacinal seria incluir crianças abaixo de 12 anos. Duas vacinas já usadas aqui, a Coronavac e a Pfizer, são amplamente empregadas em outros países para crianças a partir de três e cinco anos, respectivamente. A Coronavac usa tecnologia muito bem conhecida e extremamente segura, com vírus inativado, que já nos protege contra doenças como hepatite e gripe. A Pfizer é uma vacina de RNA, que, justamente por possuir uma tecnologia nova e de alta visibilidade, foi amplamente testada antes de sua aprovação para uso pediátrico nos EUA. No Brasil, o uso destas vacinas para crianças abaixo de 12 anos está ainda limitado pela falta de aprovação da Anvisa. A importância da regulamentação cuidadosa é inegável, mas a Anvisa nem sempre prima pela presteza (como qualquer cientista pode lhe informar), ao mesmo tempo que pode se envergar por caminhos demasiadamente burocráticos, e tem sofrido ameaças da minoria antivacinas .Neste sentido, se cobrasse celeridade à Anvisa em vez de pregar liberdade vacinal nas fronteiras, e implementasse um amplo e efetivo programa de vacinação infantil de imediato após a aprovação, Queiroga faria não somente um favor à saúde nacional, mas também uma manobra política prestigiada.

Quando tomei a vacina da gripe este ano, à minha frente havia um menino de cerca de seis anos, que disse para a mãe que não iria chorar, porque o Batman (cuja fantasia ele vestia) é corajoso. De presente de Natal, eu quero ver o pequeno Batman e sua geração tomando a vacina contra a covid, para protegê-los e, acima de tudo, continuar aumentando a proteção dos brasileiros. Teremos assim mais vacinados e menos risco de termos que lidar futuramente com contenção de aglomerações, uso de máscaras ou outras medidas sanitárias ainda necessárias. A vacinação comunitária em massa, incluindo as crianças, nos trará a baixa a transmissibilidade e atenuação da doença que queremos, o que permitirá menos restrições.

Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

Navegue por temas