Coluna

Atila Roque

Reflexões sobre um Brasil que resiste ao esquecimento

25 de janeiro de 2022

Temas

Compartilhe

A falta de cuidado com a memória material e simbólica da escravidão faz parte de uma estratégia ativa de apagamento

Este artigo nasce de um susto: ao visitar um site dedicado à venda de antiguidades, me deparei com um catálogo com vários instrumentos de tortura utilizados em pessoas negras escravizadas, disponíveis para compra e entrega imediata. Fui tomado por um sentimento de enjoo, repulsa, raiva, nojo, indignação e muita tristeza. As peças são caras, o que indica a existência de um mercado de alta renda para instrumentos que foram utilizados para o martírio de corpos negros durante o período da escravidão.

Com valores que chegam até R$ 7 mil, um comprador pode incluir em sua coleção privada, ou, quem sabe, pendurar na parede, instrumentos tais com uma palmatória de madeira, um conjunto de algemas de ferro para punhos e tornozelos, uma gargalheira (aparelho para contenção de escravos), argola para grilhões em ferro forjado, todos datados do século 19. O site também oferece outros produtos para quem gosta de coisas velhas, por exemplo, revistas, móveis, objetos caídos em desuso como barbeadores antigos, vitrolas e rádios transistores de válvula.

Os objetos de tortura são parte da subseção “aparelhos de castigo” da seção “memória da escravidão”, oferecidos junto com objetos organizados como “decoração”, “manuscritos e autografados”, “fotografias”, “máquinas e ferramentas” etc. O site alerta, após descrever em detalhes a origem e o “modo de usar” de cada objeto, não fazer a apologia à escravidão e estar movido pela motivação de “preservação da memória através dos objetos”. Um comércio lucrativo com pretensões elevadas.

Agora, apenas por um momento, imaginem colocar à venda em um site de antiguidades, digamos, um exemplar original dos chuveiros que despejavam gás letal ao invés de água sobre os judeus dos campos de extermínio dos nazistas? Ou um autêntico uniforme de um prisioneiro do campo de Auschwitz, gasto pelo uso no trabalho executado à exaustão, retirado antes da entrada na câmara de gás?

Não dá pra imaginar, não é mesmo?

O fato de não cuidarmos devidamente da memória material e simbólica da escravidão faz parte de uma estratégia ativa de apagamento e naturalização do sofrimento dos africanos e seus descendentes, os que carregam em suas trajetórias as marcas do racismo e da violência. Até hoje não conseguimos colocar de pé um museu da escravidão que contemple a enormidade que foram os quatro séculos de escravismo que fizeram do Brasil o maior destino de pessoas escravizadas sequestradas da África e trazidas para as Américas.

Deixamos precarizados, sob cuidados de guardiões abnegados, servidores públicos ou funcionários de entidades privadas que fazem o que podem para a sua proteção, sítios históricos e arqueológicos, como o Complexo do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, o maior porto de chegada de escravos do mundo. Uma boa parte do total de cinco milhões de pessoas escravizadas trazidas para o Brasil foram ali desembarcadas, algumas trazendo presos aos pés e mãos instrumentos similares aos que agora são colocados à venda no mercado de antiguidade.

O resgate da nossa humanidade comum passa, necessariamente, por uma recuperação da memória da trajetória dos povos subalternizados; resgatar a marca deixada na construção da nossa nacionalidade por negros, indígenas e mulheres a partir de suas diferentes inserções sociais ao longo da história, seja nas artes, ciências ou na política. São histórias marcadas por genocídios e expropriações territoriais, mas também condutoras de sabedorias e aprendizagens que resistem e marcam profundamente o que somos como civilização brasileira.

O resgate da nossa humanidade comum passa, necessariamente, por uma recuperação da memória da trajetória dos povos subalternizados

O Brasil é um país de memória seletiva, de uma história única, como diz a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie . Nossas datas comemorativas, heróis, monumentos, são todos definidos a partir de um ponto de vista colonial-europeu, branco e masculino, com algumas notórias exceções, quase sempre resultado de lutas sociais. Essa supressão simbólica pavimenta o caminho para a eliminação de corpos, o apagamento de trajetórias, a degradação de culturas, entre outras violências. A persistência do racismo e das desigualdades, o desprezo profundo de nossas elites educadas pela brasilidade popular, resulta em um desejo ativo de ser outra coisa que não o que somos; alimenta uma violência que fantasia um desejo de “limpeza” manifestado com frequência em medidas reais de extermínio ou deslocamento forçado de milhões de pessoas ao longo da nossa história.

O Brasil, no entanto, resiste e encontra os caminhos para a afirmação da sua riqueza e pluralidade. Devemos, essencialmente, à cultura e às manifestações artísticas populares a resiliência que faz com que as nossas histórias continuem a ser contadas nas festas e nas celebrações da religiosidade sincrética brasileira, através do samba e outras manifestações artísticas que fazem emergir nosso desejo de re-existir. É no canto de resistência e de afirmação, como os de Elza Soares, Milton Nascimento e Nara Leão, que encontramos a inspiração para a construção de caminhos que nos permitem reimaginar o Brasil. Na escrita de Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves e Eliane Alves Cruz encontramos o que somos, fomos e seremos. Isso é o que me traz esperança de que vamos atravessar esse oceano (real e imaginário) de tormentas que parece não acabar nunca, há séculos.

A pesquisa acadêmica e as universidades avançaram muito nas últimas décadas; atualmente, já contamos com um capital de conhecimento vasto o suficiente para orientar esse esforço de salvação do muito que ainda existe disperso em acervos públicos e privados, muitas vezes vergonhosamente comercializados, como no exemplo que moveu esse texto. É preciso o engajamento efetivo dos que detêm os recursos necessários a esse resgate.

Contra a folclorização de suas manifestações artísticas e a comercialização de suas dores, torna-se urgente um esforço de salvação e de preservação da memória histórica dos povos subalternizados, que trazem nas suas trajetórias o melhor do que somos como país.

Atila Roqueé historiador, cientista político e diretor da Fundação Ford no Brasil. Exerceu papel de liderança em diferentes organizações da sociedade civil no Brasil e no exterior. Foi diretor-executivo da ActionAid International nos EUA e do INESC (Instituto de Estudos Socioeconômicos). Antes de assumir a Fundação Ford, em 2017, foi diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil. Faz parte do Conselho Diretor do GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas).

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

Navegue por temas