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Em 11 de janeiro, celebramos 100 anos desde que a primeira injeção de insulina foi usada em um menino de 14 anos , na Universidade de Toronto, marcando o início de uma era em que a diabetes tipo I, que requer o uso de insulina, passou a ser uma doença tratável em vez de uma sentença de morte. Celebramos também em 2022 os 40 anos de um segundo marco importante no tratamento da doença: a disponibilização comercial de insulina humana, a partir de 1982.
As primeiras insulinas usadas não eram humanas; foram extraídas de pâncreas de cachorro, pois foi em cães que inicialmente se entendeu que havia algum componente ( que hoje chamamos de insulina ) deste órgão que faltava nas crianças com diabetes. Logo depois, adaptou-se a técnica para isolar a proteína de pâncreas de boi ou porco, sendo estas usadas até os anos 1980. O problema das insulinas animais é que sua produção é pouco eficiente: para cada grama de insulina suína, são necessários cerca de 8 kg de pâncreas, vindos de em torno de 50 animais. Há também a desvantagem destas insulinas animais não serem idênticas à nossa insulina humana. Elas também podem conter contaminantes dos animais. Por isso, nos anos 1970, membros da comunidade científica se reuniram em torno de um objetivo muito ousado para a época, mas claramente importante: produzir insulina idêntica à humana, sintética, em laboratório, sem uso de animais.
Empurrando o conhecimento ainda rudimentar de biologia molecular da época, cientistas conseguiram introduzir o material genético com a informação necessária para produzir insulina em uma bactéria inofensiva capaz de produzir grande quantidade de proteínas em curto espaço de tempo. Estava criada a tecnologia necessária para produzir insulina sem uso de animais, idêntica à insulina humana. Esta é tão eficaz, segura, fácil e barata de produzir que logo substituiu a insulina de origem animal na prática médica. Estava também gerado em laboratório o primeiro organismo transgênico.
Há um preconceito enorme em relação à palavra “transgênico”, associada por muitos, sem nenhuma base científica, como algo ruim para o corpo humano ou para o meio ambiente. O termo simplesmente significa um organismo que recebeu genes de outro organismo, dando-lhe a informação necessária para que passe a produzir um produto de interesse. Só há vantagens: a proteína final produzida nas bactérias não tem “memória” de onde veio originalmente ( moléculas não têm memória , nem diferença de periculosidade por serem naturais ou sintéticas ), e apresenta uma estrutura idêntica à da insulina que diabéticos deixam de produzir.
A tecnologia é hoje muito difundida na indústria. Um levantamento de 2015 (portanto já bastante desatualizado) indica que há pelo menos 400 fármacos para uso humano produzidos em organismos transgênicos. Organismos geneticamente modificados são usados para produzir proteínas para tratar doenças como diabetes, talassemia, distúrbios da coagulação, e vários tipos de câncer, além de proteger milhões de pessoas através de vacinas. Não há nenhum perigo no uso de ferramentas de engenharia genética, pois, além de transgênicos gerados em laboratório serem extremamente estudados para determinar sua segurança, nós somos expostos a material genético natural todo dia, na nossa comida por exemplo. Todo organismo vivo (e portanto toda comida) tem DNA, e você come ele com seu feijão com arroz diariamente. Mesmo assim, ninguém nunca passou a sintetizar proteínas de feijão, pois não há mecanismo biológico para isso acontecer.
Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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