Coluna
Alicia Kowaltowski
A relação entre o consumo de bebidas alcóolicas e o coração
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É comum ouvirmos que beber quantidades moderadas de álcool, como uma taça de vinho ao dia, ajuda a preservar a saúde dos nossos corações, colaborando para um envelhecimento saudável. Este dito popular não é sem base científica, pois há estudos populacionais que demonstram uma relação em “J” entre consumo de álcool e saúde cardíaca: se olharmos para populações grandes, vemos que pessoas que consomem quantidades muito baixas de álcool têm chances de desenvolver doenças cardíacas maiores que aquelas que consomem quantidades moderadas, enquanto indivíduos com consumo mais elevado novamente possuem maior chance de desenvolver doença cardíaca, gerando um gráfico com o formato aproximado de um“J” . Mas é preciso ter cautela ao olhar somente para a correlação entre o consumo de álcool e a saúde cardíaca, pois podem haver outras diferenças nas vidas das pessoas que consomem álcool em moderação que protegem seus corações relativamente aos que não consomem álcool. Um exemplo é ter dietas mais variadas e ricas em frutas e verduras, conhecidas por proteger o coração. Outro exemplo é ter mais sociabilidade e convívio com amigos, que também é um aliado do envelhecimento saudável.
Mas há também estudos que indicam que a exposição ao álcool por si só pode levar à proteção do coração. Em alguns ensaios com animais de laboratório que consumiram álcool e se promove um infarto cardíaco experimentalmente, o tecido do coração se recupera melhor que em animais que não beberam o álcool. Como as dietas e o ambiente dos animais eram iguais, com a exceção do consumo de álcool, esses estudos sugerem que o etanol de fato protege o coração. Existem, porém, várias situações em que ser exposto a estímulos que causam um baixo grau de lesão gera uma resposta do corpo que pode ajudar a proteger contra uma lesão maior posterior, um fenômeno biológico chamado hormese e que é algo como “o que não me mata me faz mais forte”. Embora seja um fenômeno interessante, o benefício da reação corporal a estes estímulos horméticos não é necessariamente suficiente para sobrepor o risco da exposição a lesões. Por exemplo, arsênico é bastante tóxico para humanos, mas a exposição a doses baixas de arsênico pode proteger contra danos causados por doses altas de arsênico. A despeito disso, nunca será recomendável se expor a doses baixas de arsênico, pois estas já causam estragos sozinhas. Semelhantemente, sofrer pequenos infartos cardíacos protege contra lesões cardíacas de infartos maiores, mas não faz sentido recomendar que se tenha pequenos infartos para ativar estes mecanismos de proteção contra infartos maiores.
Para tentar responder se o consumo de álcool é de fato protetor por si só, e benéfico em determinadas doses, um estudo recente olhou para uma base de dados do Reino Unido em que haviam sido organizadas informações nutricionais, dados de saúde e genéticos de mais de 370 mil pessoas. O estudo tem algumas limitações, como se focar somente em indivíduos de origem europeia, e não ser intervencionista (colocando as pessoas em grupos randomizados e lhes dando álcool em diferentes quantidades bem controladas para ver os resultados). Em vez disso, usa questionários e medidas de exames laboratoriais para estimar o consumo de álcool na vida normal, que pode gerar algum erro. Mas, em compensação, o alto número de indivíduos envolvidos e as extensas bases de dados associadas à saúde e estilo de vida de cada indivíduo dão força aos resultados. Adicionalmente, por haver informação de genéticas destas pessoas, o grupo pôde fazer um tratamento dos dados usando variações naturais para randomizar os indivíduos, separando melhor o efeito cardíaco de cada característica dos seus estilos de vida.
Nesta população inglesa, quando se olha a relação entre consumo de álcool e parâmetros que indicam má saúde cardíaca, como a presença de hipertensão ou doença coronariana, vê-se um típico gráfico em “ J”, com pessoas que não consomem nenhum álcool com incidências um pouco maiores que aquelas que consomem cerca de cinco doses por semana (sendo cada dose igual a 14 gramas de álcool, o equivalente a uma taça de vinho ou lata de cerveja). Pessoas que consumiam cerca de 10 doses de álcool por semana tinham risco semelhante àquelas que não consumiam álcool algum, e aquelas com ingestão de 20 ou mais doses possuíam risco significativamente maior. Estes dados poderiam ser comprobatórios de um efeito protetor do consumo de cerca de cinco doses de álcool por semana, mas o estudo também viu que este grupo de pessoas tinha outras características diferentes dos abstêmios, incluindo fumar menos, ter menos obesidade, mais atividade física e maior consumo de vegetais, todas atribuições que fortemente protegem o coração. Ao fazer um tratamento estatístico para eliminar os efeitos destas outras diferenças conhecidamente cardioprotetoras entre os grupos, o grupo pôde olhar apenas para o efeito do álcool na saúde cardíaca. Neste caso a curva em “ J” desapareceu, e nota-se que o consumo de álcool aumenta o risco de hipertensão, doença coronariana, infarto e insuficiência cardíaca, independentemente da quantidade de álcool ingerida. Ou seja: não há nenhuma dose de álcool que proteja o coração – todas correlacionam com aumento de lesões cardíacas.
Por mais que esta seja uma má notícia para aqueles que gostam de justificar o consumo de quantidades moderadas de álcool com a sua aparente correlação com melhora de saúde cardíaca, não há motivos para grave preocupação se você aprecia beber com moderação. O estudo também mostra claramente que, embora o risco cardíaco aumente com qualquer quantidade de álcool, este aumento é pequeno para quem bebe até cinco doses por semana. Isso significa que, se seu consumo de fato é moderado, é algo que lhe traz felicidade e está associado a outras práticas que protegem seu coração, o risco pode ser contrabalanceado por outros benefícios agregados. Mas é importante, com esse novo conhecimento científico, que seu consumo alcóolico aconteça sabendo que beber não traz benefício cardíaco direto. Pelo contrário, para se manter um consumo realmente moderado, é essencial não dourar falsamente a pílula, e lembrar que o risco cardíaco se eleva muito à medida que o consumo semanal de bebidas alcoólicas aumenta para além de uma dose diária.
Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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