Coluna

Alicia Kowaltowski

A quem interessa a política de ódio à ciência e à tecnologia?

07 de setembro de 2022

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Uma medida provisória amplamente impopular e que contraria as vontades do Congresso ser publicada tão próxima das eleições só não surpreende pelo histórico de ataques constantes do atual governo

Recentemente fui convidada para apresentar o trabalho do meu grupo no LNBio (Laboratório Nacional de Biociências) do CNPEM ( Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais) , o maior e mais complexo centro nacional dedicado exclusivamente à pesquisa científica e tecnológica (diferentemente das universidades, que produzem pesquisa aliada a atividades de ensino e extensão). Ali, tive o privilégio de discutir dados de pesquisa ao lado do impressionante Sirius, formado por uma nova fonte de fonte de luz síncrotron e suas avançadas estações experimentais, capazes de usar a luz produzida por aceleradores de elétrons de última geração para aplicações das mais diversas: entender as propriedades fundamentais dos átomos que formam tudo que nos cerca, mapear a diversidade entre células diferentes de qualquer organismo vivo, entender a composição de materiais capazes de fazer produtos melhores, e otimizar processos industriais através da compreensão de seus mecanismos químicos, dentre várias outras possibilidades.

Digo que é um privilégio apresentar meus dados lá porque a infraestrutura de ponta atrai pesquisadores de alta qualidade do mundo inteiro. Pude trocar ideias com dezenas de cientistas engajados e inteligentes que trabalham ali, procurando respostas para perguntas instigantes, na fronteira do conhecimento. Saí com ideias novas, inspirada pela discussão científica e questionamentos dos meus pares, que constituem a base de toda a geração de novo conhecimento. Saí também inspirada com as perspectivas futuras do LNBio, que planejava várias ações novas com base nos repasses do FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) a partir de 2023.

O FNDCT foi criado em 1969, e consiste num fundo para financiar desenvolvimento científico, tecnológico e inovação, promovendo o desenvolvimento econômico e social do país. Foi importante para o estabelecimento de programas científicos e de pós-graduação nos anos 1970, mas começou a sofrer falta de receitas e problemas de implementação logo depois. Esses problemas foram abordados por múltiplas ações ao longo de décadas, incluindo a criação dos Fundos Setoriais como fonte de financiamento, e a regulamentação do Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação, em 2018. Uma vez finalizados estes fatores complicadores, os recursos infelizmente não começaram a fluir para projetos de pesquisa, sendo na sua grande maioria contingenciados, com a desculpa de se manter o equilíbrio fiscal. Num raro exemplo de união, e numa demonstração de que a importância de investimentos na área científica independe de facções políticas, o Congresso aprovou com ampla maioria a Lei Complementar nº 177 em janeiro de 2021, proibindo este contingenciamento, e assegurando o real investimento no desenvolvimento científico e tecnológico nacional.

Mas o governo Bolsonaro não aceitou esta decisão ampla e suprapartidária, e se sucederam várias tentativas de evitar o investimento dos recursos do FNDCT, através de vetos a pontos-chave da lei, cortes em recursos previstos, ou simples prevaricação. Como exemplo, dos R$ 576 milhões de recursos do FNDCT previstos para o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) em 2021, valor já reconhecidamente baixo, apenas R$ 100 milhões foram repassados, sendo este repasse feito no dia 29 de dezembro.

A última das interferências governamentais contra o FNDCT ocorreu apenas dias após a minha visita ao LNBio, com a assinatura da Medida Provisória nº 1.136 , em 29 de agosto, pelo presidente Jair Bolsonaro e ministros Paulo Guedes (Economia) e Paulo César Alvim (Ciência, Tecnologia e Inovações). Contrariando a Lei Complementar 177 e a própria Constituição Federal , a medida retira a proibição do contingenciamento de recursos do FNDCT, removendo todos as verbas adicionais para a área em 2022, e prevendo contingenciamento de porções significativas destes recursos nos anos subsequentes, até 2027. Não contentes em frear o desenvolvimento científico durante os quatro anos de seu governo, buscam agora coibir as possibilidades de desenvolvimento futuro também.

Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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