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Alicia Kowaltowski

Guido Sant’Anna: o exemplo que o Brasil não sabe que precisa

05 de outubro de 2022

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Imagine uma sociedade em que artistas, cientistas, professores e agentes de mudanças sociais de excepcional desempenho sejam ovacionados

Estamos na semana das eleições, que vergonhosamente levaram ao Senado um ministro que assistiu, do seu mundinho da lua, ao desmantelamento da ciência nacional pela qual ele era responsável. Estamos também na semana de anúncio dos prêmios Nobel, uma celebração mundial da ciência da mais alta qualidade, explorando as fronteiras mais instigantes do conhecimento. Mas esta cientista-colunista não vai falar nem da lastimável política científica nacional, nem da fenomenal pesquisa premiada em Estocolmo: vai falar de um jovem violinista chamado Guido Sant’Anna. O faço porque política já é assunto de destaque desde sempre, e a ciência ganhará manchetes esta semana sem que eu o faça pessoalmente. Por outro lado, as conquistas e exemplos deste jovem ainda não ganharam a atenção que merecem.

Em 25 de setembro, Guido Sant’Anna, de 17 anos, venceu o Concurso Internacional para Violino Fritz Kreisler, em Viena, na Áustria, tocando peças de Bach, Paganini, Kreisler e Brahms, dentre outros, durante as quatro rodadas de apresentações dos candidatos ao prêmio. É um feito fenomenal , magnificado pela sua baixa idade (o concurso aceita candidatos abaixo dos 30 anos) e pelo fato de ter tido as bases de sua formação musical (incluindo o trabalho da respeitadíssima pedagoga Elisa Fukuda) no Brasil, país com pouca tradição na área. A conquista foi noticiada em alguns jornais brasileiros, mas não houve o destaque abrangente que se veria se fosse um campeão mundial em algum esporte.

A verdade é que música não é esporte, e vencer um concurso de violino não significa ser o mais rápido ou preciso instrumentista. Em concursos de instrumentistas clássicos, todos os candidatos que recebem o prestigioso convite para participar são capazes de executar tecnicamente as difíceis peças do repertório apresentado. De fato, o nível de treinamento de violinistas atuais é tão alto que alguns dos participantes do concurso em questão já se apresentavam virtuosisticamente tocando Paganini em público com idades em que a maioria das crianças começa a ser alfabetizada. O que se procura nos finalistas e vencedores de um concurso internacional vai muito além disto: envolve qualidade sonora, carisma, projeção, sinceridade, capacidade de interpretação e de interferir nos sentimentos de quem ouve. E foi nestes quesitos que o jovem Guido Sant’Anna, na visão obviamente subjetiva de um júri internacional especializado, foi considerado excepcional. O reconhecimento dará a ele maior visibilidade no mundo da música clássica, e inclui prêmio em dinheiro, direitos à gravação de álbum próprio e apresentações como solista junto a algumas das melhores orquestras do mundo. Catalisará uma carreira de indubitável sucesso, em que tocará a alma de muitos com sua música.

Mas a premiação serve para muito mais do que impulsionar, merecidamente, a carreira de um musicista individual. Tem como objetivo também inspirar e impulsionar objetivos construtivos em muitos, catalisando um movimento positivo pela arte e cultura. Jovens que assistiram ao evento irão se inspirar e com isso se dedicar a serem melhores na área, pois não se engane: por mais que o diferencial de um grande solista premiado seja para além da técnica virtuosística, a aquisição desta qualidade não vem de um dom inato, e sim de dedicação, disciplina e muito trabalho focado. Teremos mais e melhores profissionais para nos inspirar e unir no futuro, elevando toda a área artística.

E a influência não é restrita à atividade musical. A música, e cultura em geral, são atividades que unem as pessoas das mais diversas realidades, trazendo mecanismos para que possam construir algo em prol do bem comum . São atividades essenciais para a manutenção da coesão da humanidade, para entendermos uns aos outros, e nos inspirar a atuar conjuntamente e construtivamente. Não consigo imaginar atividades mais importantes não somente no Brasil dividido por uma eleição que nos deixou com sentimentos crus, à flor da pele, mas também num mundo dividido por política, guerra, individualismo e desrespeito às diferenças individuais.

Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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