Coluna

João Marcelo Borges

Educação em 2022: voltar para o futuro ou ‘Adeus, Lênin’?

15 de fevereiro de 2022

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A crise educacional é inédita por sua magnitude e profundidade, mas os planos dos gestores para lidar com seus efeitos são bastante tradicionais

Milhões de crianças e adolescentes estão retornando às salas de aulas com a expectativa de que, ao menos no quesito presencialidade, esse possa ser um ano letivo inteiramente normal. Mas quais são as expectativas e os planos dos gestores educacionais e especialistas do setor para essa população?

Analisando recentes relatórios de organizações nacionais e internacionais que trabalham com educação, bem como declarações de seus dirigentes, a conclusão é que as expectativas que eles nutrem por esses jovens é baixa. Por exemplo, a inusual parceria Banco Mundial – Unesco – Unicef tem reiteradamente alertado para o risco de uma “geração perdida” ao se referir aos estudantes hoje matriculados na educação básica. “Estamos perdendo uma geração” foi o título de artigo de opinião do diretor de educação do Banco Mundial, coassinado por um pesquisador do prestigioso Brookings Institution.

Como discuti antes , premidos, de um lado, pela necessidade de chamar a atenção dos países (e de seus próprios pares) para a magnitude da crise educacional deflagrada pela pandemia e, de outro, pela tarefa de mostrar caminhos para a superar, estou cada vez mais convencido de que esses diversos tecnocratas , além de muitos ativistas e jornalistas, que têm batido na tecla da “geração perdida”, estão errando na dosagem do remédio da advocacy e, assim, estigmatizando os estudantes, sobretudo os mais vulneráveis.

Seja como for, em um ponto todos concordamos: as perdas e atrasos na aprendizagem dos estudantes são enormes, particularmente nos países/redes de ensino que mais tempo ficaram sem aulas presenciais e cujas estratégias de educação remota foram menos eficazes. Além disso, essas perdas e atrasos se distribuem de forma desigual entre os estudantes, penalizando sobretudo os mais pobres, com deficiências e moradores de áreas remotas (bem como outras minorias políticas ou maiorias silenciadas).

Na educação, estamos buscando apenas recuperar as aparências de um mundo que já ficou para trás?

A crise educacional é inédita por sua magnitude e profundidade, bem como por afetar países ricos e pobres simultaneamente, mas os planos dos gestores para lidar com seus efeitos são bastante tradicionais. Isso é ruim? Não necessariamente. Afinal, educação é um processo cumulativo e há muitas evidências sobre o que funciona e o que não funciona para gerar aprendizagens com equidade.

Com efeito, as prescrições de organizações diversas como Unicef, Unesco, Banco Mundial, OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), Todos Pela Educação, entre outras, apontam para um conjunto que inclui: (i) incrementar os investimentos em educação; (ii) avaliar o nível de aprendizagem dos alunos regularmente; (iii) desenvolver estratégias pedagógicas customizáveis pelo nível de aprendizagem dos alunos, com medidas variadas para alunos com maior defasagem, enfatizando a necessidade de recuperar e recompor aprendizagens; (iv) valorizar e qualificar docentes e demais profissionais da educação, para que tenham as competências e instrumentos necessários para as práticas pedagógicas requeridas; (v) implantar esforços multissetoriais para reinserir nos sistemas educativos os alunos que evadiram ou abandonaram a escola, provendo renda e outros insumos para assegurar o bem-estar mínimo para esses estudantes e suas famílias. Talvez a principal diferença esteja na ênfase dada ao uso de recursos digitais e de métodos híbridos de ensino, que são fortemente recomendadas pela tríade Unicef-Unesco-Banco Mundial, enquanto recebem menos ênfase das demais.

De qualquer modo, não há nada de novo nessas recomendações. Quase todas elas vêm sendo há anos apontadas como necessárias para sistemas de ensino de baixo rendimento. A novidade, como dissemos, está na escala dos estudantes que precisarão ser alcançados e na profundidade das perdas e atrasos com a qual eles retornam às escolas. Os resultados variarão entre países e redes que conseguirem implementar mais e melhor essas e outras corretas sugestões de políticas e práticas exaradas por tão renomadas instituições.

Contudo, cabe perguntar: isso responde aos anseios dos estudantes? Essas recomendações alinham-se aos desafios e necessidades do mundo? Por que, de uma hora para outra, nosso maior objetivo parece ser retornar a 2019, ao mundo pré-pandemia? Não digo apenas em termos de “nível de aprendizagens”, mas também em relação às políticas educacionais, às práticas pedagógicas e aoethos subjacente aos currículos.

Temo que estejamos vivendo aquela situação retratada na tragicomédia alemã “Adeus, Lênin!”. O filme se passa em Berlim Oriental, às vésperas da queda do Muro e da reunificação alemã, quando uma ativista comunista entra em coma ao ver seu filho protestando contra o regime. Quando retorna do coma, o médico informa à família que devem proteger a mãe de situações de grande estresse, sob pena de ela sofrer outro colapso. No entanto, Berlim já era novamente uma cidade una e o capitalismo ganhava tração. Os filhos então fazem de tudo para que a mãe não perceba as mudanças: recuperam a mobília aposentada, voltam a usar suas roupas antigas, buscam enlatados da moribunda Alemanha Oriental e chegam a produzir noticiários para entreter a saudosa e convalescente mãe.

A trama do filme se complica ao final, mas, para efeitos dessa coluna, pergunto-me: na educação, estamos buscando apenas recuperar as aparências (funcionamento das escolas e níveis de aprendizagens) de um mundo que já ficou para trás? Que, aliás, já havia ficado para trás mesmo antes da queda do Muro, como veríamos anos depois com a extinção da União Soviética)? Em um mundo tão incerto, com a economia em acelerada transformação, mundo do trabalho em transição contínua e com problemas estruturais não superados (racismo estrutural) e novos desafios existenciais (emergência climática), oethos educacional pode ser o mesmo?

Queremos, ao fim e ao cabo, voltar para o futuro, para emprestar de outro filme célebre a expressão, ou fingir que nada aconteceu, até que a realidade se imponha, como inevitavelmente ela o fez até na película ficcional teutônica? Um bom conjunto de reflexões encontra-se no ótimo relatório Reimagining Our Futures Together – A New Social Contract for Education (reimaginando nossos futuros juntos – um novo contrato social para a educação, em tradução livre), preparado pela Comissão Internacional sobre os Futuros da Educação, comissionada pela Unesco. Voltaremos a ele futuramente.

PS: Na epígrafe ao seu “O Sol Também se Levanta”, Hemingway pespegou a frase que atribuiu a Gertrude Stein: “Vocês são todos uma geração perdida”. O sentido da expressão, ali, era bem diferente da que tem sido usada hoje. Para aqueles artistas e literatos americanos expatriados na Paris dos anos 1920, “perdida” era “desorientada”, porque seus valores não pareciam mais fazer sentido depois da Primeira Guerra Mundial, menos ainda quando o presidente do Estados Unidos propunha um “retorno à normalidade”. Qualquer semelhança não é mera coincidência, mas aquela geração, que incluiu Hemingway, John dos Passos, Hart Crane, F. Scott Fitzgerald, entre outros, pode ter sido muita coisa, menos perdida no sentido de desperdiçada ou de não contribuinte para o porvir. Para voltar ao cinema, estão bem retratados no agradável “Meia-noite em Paris”, de Woody Allen.

João Marcelo Borgesé pesquisador do Centro de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas. Foi diretor de Estratégia Política do Todos Pela Educação (2018-2020), Consultor Sênior e Especialista em Educação do Banco Interamericano de Desenvolvimento (2011-2018), além de ter ocupado cargos de direção no governo do estado de São Paulo e de gerência no Ministério do Planejamento. Idealizador e cofundador do Movimento Colabora Educação, é mestre em economia política internacional, pela London School of Economics, onde estudou como bolsista Chevening, do governo do Reino Unido.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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