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A realeza britânica, cuja presença, poder e interesse público sempre me parecem bizarros em pleno século 21, começou o ano com revelações sérias sobre o estado de saúde de dois de seus membros: tanto o rei Charles 3º quanto a princesa de Gales Kate Middleton estão com câncer e em tratamento. Nenhum dos dois revelou qual tipo de câncer, e certamente têm o direito a tal privacidade. Mas me chamou a atenção a diferença entre os comentários sobre tratamentos dos dois. Kate agradeceu à equipe de profissionais de saúde que a acompanha, e revelou ter feito cirurgia e estar realizando quimioterapia. Charles não revelou nenhum detalhe sobre seu tratamento.
Suspeito que essa falta de revelação de tipo de tratamento do rei seja para evitar acusações de incoerência. Charles tem um longo histórico de rejeição a práticas médicas baseadas em evidências científicas que norteiam o melhor tratamento possível para qualquer doença, em especial o câncer. Já abertamente criticou a quimioterapia, sem possuir o entendimento de que o termo simplesmente denota tratamentos com moléculas (fármacos) que comprovadamente combatem o tipo específico de células que crescem desordenadamente no corpo da pessoa, dando-lhe uma das mais de 100 doenças categorizadas como câncer. Em vez disso, Charles propôs uso de suco de cenoura e enema de café para tratamento de câncer, em consonância com a ideia comum, mas totalmente incorreta, de que aquilo que é natural é necessariamente bom para a saúde humana. Também se tornou patrono da associação britânica pró-homeopatia, dois anos após a prática ter sido desfinanciada pelo NHS (serviço de saúde pública britânico), pois comprovadamente não possui efeitos para além do placebo. As crenças naturebas do monarca não se limitam a falas, e incluem vender suplementos de alcachofra e dente de leão supostamente “detox” (sem nunca explicar que moléculas tóxicas esses suplementos detoxificam, até porque elas não existem), e praticar lobby para evitar a implementação no Reino Unido de normas da Comunidade Europeia visando limitar vendas de suplementos herbais sem devidas autorizações de segurança. Charles faz tudo isso com a autoridade de ter sido apontado presidente da British Medical Association (Associação Médica Britânica), título obtido em razão de seu nascimento em nobreza, e obviamente não pelo seu conhecimento na área.
Poderíamos imaginar que as ações de um monarca natureba e anticientífico têm influência limitada sobre a saúde mundial, mas não é o que os números indicam. Influenciadores com larga cobertura pela mídia possuem enorme inserção nas decisões da população, por menos qualificados que sejam. Um exemplo disso é o candidato a presidente norte-americano Robert F. Kennedy Jr., herdeiro de uma família que é o que mais se aproxima de realeza no novo continente. Kennedy faz parte da chamada “Dúzia de Desinformantes”, um grupo de apenas 12 pessoas com grande influência pública que produz a vasta maioria das informações falsas na internet e em mídias sociais sobre os efeitos de vacinas. As ações dos 12 membros desse grupo são devastadoras: só nos EUA estima-se que mais de 300 mil pessoas morreram desnecessariamente de covid devido à hesitação vacinal criada pelas fake news agressivamente disseminadas pelo grupo.
Preocupantemente, membros da clã de 12 desinformantes não agem por idealismo apenas; são fortemente impulsionados por estímulos financeiros. Kennedy ganha cerca de meio milhão de dólares todo ano como salário da “Children’s Health Defense”, uma organização antivacinas que o apoia. Sayer Ji, outro infame membro do clã de 12 desinformantes, fundou uma comunidade internética que propaga conceitos naturebas e antivacinas, com cerca de um milhão de visualizações por mês mediante assinaturas pagas, que custam entre US$ 75 e US$ 850; calcula-se que seu patrimônio multimilionário tenha dobrado com a visibilidade conferida a ele pela crise de saúde pública associada à covid. Joseph Mercola, o mais ativo dos desinformantes na lista, possui ampla visibilidade em redes sociais, vende uma variedade de suplementos naturais e alimentos orgânicos, escreve novos livros pseudocientíficos campeões de venda quase todo ano, e possui patrimônio líquido avaliado acima de US$ 100 milhões. Desinformar enriquece.
Práticas como tratamentos herbais, homeopatia e osteopatia, que dão tanto lucro aos membros do clube de desinformantes, são frequentemente chamadas de “medicina alternativa”, um termo que eu julgo incorreto, pois medicina precisa ser baseada em evidências científicas, e só é “alternativo” aquilo que não possui embasamento técnico (e que, portanto, não pode ser chamado de medicina). Essas práticas comprovadamente não são eficazes, e sequer são benignas ou inócuas, como muitos as fazem parecer. Em comparações científicas, o uso de terapias alternativas em detrimento de tratamentos médicos comprovados aumentou as chances de morte de pacientes com cânceres não metastáticos entre duas e seis vezes, dependendo do tipo de câncer. Nem mesmo o uso delas como “terapias complementares” supostamente adjuvantes (e não excludentes) é seguro: um estudo de quase 2 milhões de pacientes com câncer demonstrou que aqueles que optam por práticas complementares, como suplementos herbais/botânicos, medicina tradicional chinesa ou homeopatia, possuem chance de morte 2 vezes maior. Isso acontece porque, embora não tenham se negado a realizar tratamentos cientificamente embasados, mais frequentemente postergam ou recusam pelo menos uma parte desses, piorando as suas chances de controle ou cura da doença.
Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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