Coluna
Alicia Kowaltowski
Não há justiça em se dar ganho de causa à pseudociência
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Tenho muito orgulho dos cientistas que passaram pelo meu grupo de pesquisa, incluindo a dra. Ana Bonassa, que realizou pós-doutorado no nosso laboratório, e descobriu um novo mecanismo no qual a obesidade promove lesões às células do pâncreas que secretam insulina, contribuindo assim para o entendimento de como desenvolvemos diabetes. Ela produziu esses achados trabalhando arduamente em paralelo com uma outra atividade que faz com afinco: a divulgação científica, realizada principalmente pelo canal Nunca Vi 1 Cientista, em associação com dra. Laura Marise de Freitas, que também realizou pós-doutoramento no Departamento de Bioquímica da USP (Universidade de São Paulo). A divulgação científica de qualidade promovida pela dupla se tornou sua ocupação em tempo integral, atividade essencial nesses tempos em que prospera a desinformação e a pseudociência.
Em julho de 2023, a dra. Bonassa usou seu conhecimento qualificado em diabetes para desmentir a informação absurda presente na internet de que a doença era causada por vermes no pâncreas, podendo ser curada com um tratamento para esses vermes promovido por um influenciador digital. Reforço aqui a importância dessa ação, pois a alegação é puro delírio: não existe verme que causa diabetes, e a doença não pode ser curada com os suplementos que o influencer quer vender. Perigosamente, a diabetes envolve altos níveis de glicose no sangue que frequentemente não causam sintomas em pacientes. Deste modo, se alguém acredita estar curado porque tomou um produto do influencer, pode deixar de cuidar de uma doença que silenciosamente continuará causando destruição aos seus tecidos.
Embora não tenha citado o nome do influenciador, o vídeo educativo da dra. Bonassa apresentava em determinado momento um print como pano de fundo da informação de identificação pública do influenciador em mídia social. Foi o suficiente para o indivíduo apresentar ação contra o canal por uso indevido de imagem e danos morais. A sentença, proferida pela juíza dra. Larissa Boni Valieris, embora admita que as postagens sobre curas e teses do influencer são “no mínimo duvidosas”, conclui que não houve a necessária cautela das cientistas ao divulgar o vídeo, e que “esse vídeo informativo resultou em uma ‘mancha’ de sua imagem na venda de seus serviços”. No final, obrigou o canal Nunca Vi 1 Cientista a remover o vídeo educativo e a pagar R$ 1.000 por danos morais.
Se a dra. Bonassa de fato conseguiu manchar a imagem e prevenir a venda de serviços pseudocientíficos do influencer sem sequer pronunciar o nome do indivíduo, quero estar na boa companhia dela. Só não serei discreta e elegante a ponto de evitar seu nome. Direi que há uma pessoa que se apresenta nas mídias sociais como dr. André Lanza, nutricionista, especialista em fisiologia do exercício e profissional de saúde integrativa naturalista, dentre outras denominações semelhantes. Não encontrei em nenhuma de suas mídias sociais ou website a informação sobre onde ele obteve seus títulos profissionais ou qual a sua qualificação para se apresentar como doutor. Mas se falta transparência sobre suas credenciais, não falta pseudociência em suas postagens. Neste final de semana, por exemplo, postou supostos trabalhos científicos que, segundo sua interpretação, indicariam que um verme pode causar diabetes. É pseudociência exemplar: dois dos supostos artigos citados por título não existem no PubMed, a maior base de dados de literatura biomédica, indexada pelo National Institutes of Health (Institutos Nacionais da Saúde) americano. O terceiro artigo, que consta como print de tela, é uma descrição de 1983 de um caso raro de infecção humana por um verme de importância veterinária, sem nenhuma relação com diabetes. Mas isso não o impede de vender em seu site “Lanza Nature” kits de “desparasitação” pela bagatela de R$ 255, a serem administrados mensalmente, de acordo com as fases da lua, conforme ele ensinará se você se consultar com ele – pagando custos extras, claro. O kit contém uma cornucópia de extratos naturebas que não possuem efeito anti-helmíntico cientificamente comprovado, e ainda promete curar praticamente tudo, incluindo abcessos, hemorroidas, refluxo gástrico, espasmos, gastrite, asma e cólica.
Não são somente vermes que o influencer quer erradicar com seus custosos suquinhos e emulsões. Ele tem também uma obsessão por fungos, que diz ser a causa da vontade das pessoas de quererem comer açúcar, além de supostamente promover uma miríade de doenças. É claro que ele pode lhe ajudar a resolver tudo isso com poções e que ele ensina em seu curso com três meses de duração, por um módico custo de 4 x R$ 217,50. Ele e sua esposa-parceira no pseudocientifismo Thays Lanza (que também se apresenta como doutora) completam um verdadeiro bingo do anticientificismo na internet, com múltiplas postagens contendo trabalhos científicos inventados ou distorcidos, apologia infundada ao natureba, referências a energias e ressonâncias misteriosas, teorias de conspiração contra medicina baseada em evidências e questionamentos à vacinação infantil.
Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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