Coluna
Alicia Kowaltowski
É problema nenhuma cientista ter recebido o Nobel em 2024?
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Os laureados com os prêmios Nobel de física, química e medicina foram anunciados entre os dias 7 e 9 de outubro. A premiação é uma celebração internacional que coloca a ciência de excelência nas manchetes de todos os jornais. Celebramos grandes descobertas feitas pelos sete cientistas laureados, que indubitavelmente merecem o reconhecimento. Mas muitos também não puderam deixar de notar uma característica: todos os laureados cientistas em 2024 são homens.
Isso é um problema? Por um lado, é evidente que é: mulheres são 50% da população, portanto deveriam ser aproximadamente 50% dos laureados, pois ninguém duvida que não sejam igualmente capazes. Por outro lado, opino que o problema é estrutural, sem culpabilidade imediata dos painéis que realizam a avaliação de sugestões para as premiações, decidindo sobre os nomes finais laureados. Sabemos que as chances históricas de mulheres chegarem a posições superiores e terem a oportunidade de realizar grandes descobertas como os laureados são menores. Sendo assim, a escolha em si não é o problema, mas sim um sintoma de uma problemática muito maior. Sei que serei controversa aqui, mas acrescento que acho que pior do que ter a situação sem láureas a mulheres esse ano seria ter se forçado a inclusão feminina, laureando uma “mulher simbólica”, sem reconhecida igualdade de mérito.
Tenho convicção que somente resolveremos o problema de mulheres na ciência, ou de qualquer grupo sub-representado em qualquer área de atividade humana, através de boa ciência. Nesse sentido, torna-se essencial entender os entraves para que se tenha igual acesso e sucesso em carreiras científicas. Um trabalho recentemente publicado buscou acrescentar conhecimento na área através de análises quantitativas cuidadosas do fenômeno de “saída da ciência”, para tentar entender como se pode evitar essa saída indesejada. Estudaram mais de 370 mil indivíduos que começaram a publicar trabalhos científicos em 2000 ou 2010, e acompanharam sua “sobrevivência” usando ausência de publicações durante pelo menos três anos como indicador de terem deixado a atividade. Além da análise constante no trabalho publicado, criaram um mapa interativo, em que quantificam a probabilidade de se permanecer na ciência por país, gênero, ano e tempo, que certamente poderá ser usado por muitos outros grupos.
Há limitações ao trabalho, que são claramente discutidas, para além do parâmetro de publicações ser usado como sinal de “egresso científico”. O estudo se limita a países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), e, portanto, não inclui o Brasil nem a maioria dos países em desenvolvimento. Além disso, se utiliza de um sistema de identificação de nomes provavelmente femininos versus masculinos que é mais preciso em alguns países do que outros, sendo que os autores avisam que essa separação não é tão confiável no caso de alguns países, como a Coreia do Sul. Mas a quantidade e a qualidade dos dados é fascinante, e permite várias observações. Uma é que a carreira de cientista envolve alta “saída”: globalmente, cerca de um terço dos cientistas deixam a carreira em cinco anos, metade em 10 anos e dois terços até o final da análise feita (18 anos). Interessantemente, essa “saída” da ciência varia muito por país, e é bastante mais alta em países mais ricos, como Alemanha, EUA e Japão (que “perdem” por volta de 70% de seus cientistas), versus países com investimento científico relativamente menor, como países ibéricos e do leste europeu (que retêm cerca de metade). Existem vários motivos possíveis para isso, como, por exemplo, o menor ingresso de pessoas menos interessadas ou comprometidas com a carreira de início em países com menos oportunidades de financiamento, ou possivelmente a maior oferta de empregos para cientistas em atividades que não envolvem publicações (e, portanto, seriam vistos como “saída” na análise) nos países mais ricos.
A probabilidade global de “saída” da ciência por mulheres na coorte estudada que iniciou em 2000 é cerca de 10% maior comparada aos homens, o que indica que há um problema para se reter mulheres na ciência que precisa ser compreendido e melhor abordado. Mas a diferença entre gêneros não é homogênea entre áreas. Interessantemente, em áreas como ciências biológicas, médicas e agrárias, onde há presença de mulheres em proporção razoável, a “perda” relativa de mulheres é maior. Em contrapartida, em áreas em que há muito poucas mulheres, como engenharias, matemática e física, a saída proporcional destas mulheres é igual à dos homens, ou seja, não há diferença de retenção em relação a gênero. Isso pode se dever ao fato também não desejável de se dar atenção diferencial a essas raras mulheres dentro do sistema, por causa da disparidade de gênero, fazendo com que seu progresso e promoções sejam ligados ao fato de serem símbolos de seu gênero, e não cientistas individuais e diversas. Muito interessantemente, e nos dando uma indicação que as diferenças estão diminuindo, a coorte de cientistas que iniciou em 2010 não apresenta diferenças globais significativas de “saídas”, embora ainda apresente desproporção entre a entrada de homens e mulheres, e haja maior egresso de mulheres nas grandes áreas biológicas.
Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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