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Movimento Pessoas à Frente
Por uma burocracia verdadeiramente representativa
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Em março de 2025, alguns países irão se reunir para a conferência anual da Comissão sobre o Status da Mulher, principal órgão intergovernamental global exclusivamente dedicado à promoção da equidade de gênero. Nesse evento, tido como a “COP de gênero”, será discutida a Declaração e Plataforma de Ação da 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher, documentos com objetivos estratégicos em 12 áreas prioritárias de preocupação relativas às mulheres. Um deles é a garantia de igual acesso e plena participação feminina nas estruturas de poder e na tomada de decisões.
Enquanto nações como França, México e Chile vão poder celebrar o alcance da paridade de gênero em seus governos, o Brasil leva na bagagem o fato de ser o último entre os 15 países da América Latina no quesito de presença de mulheres em cargos de liderança na Administração Pública, de acordo com estudo do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) de 2023.
É preciso avançar com políticas que ampliem a presença, de maneira sustentável e efetiva, de mulheres em posição de liderança
Os números mostram que as mulheres não chegam a 30% em nenhum dos espaços públicos de decisão e alta liderança analisados em levantamentos recentes. Segundo um estudo do Movimento Pessoas à Frente e a pesquisa Censo das Secretárias, no Executivo federal, são 27% (em cargos de natureza especial); e nos estados e municípios, 7% como governadoras, 15,5% como prefeitas e 28% como secretárias de primeiro escalão. No legislativo, Câmaras Municipais (18%), Assembleias Legislativas (15%), Câmara dos Deputados (17%) e Senado Federal (13%) também registram sub-representação feminina.
A liderança é uma relação que envolve o exercício de poder, caracterizando-se por um processo simultâneo de manutenção do interesse e comprometimento, orientação das atividades para fins específicos, desenvolvimento de relações cooperativas e mobilização de recursos. Ser líder no setor público e governamental apresenta particularidades, pois, em contextos complexos, hierarquizados e marcados por disputas entre diversos atores sociais, essas pessoas precisam equilibrar múltiplos objetivos, racionalidades e interesses distintos. As evidências já indicam os efeitos positivos de uma maior diversidade em cargos de liderança, contribuindo para um olhar mais efetivo sobre os problemas da população e, por consequência, soluções mais adequadas. O quanto antes, é preciso desenvolver ações que, de fato, promovam uma burocracia representativa, inclusive nos postos de liderança – a partir do tripé do acesso, ascensão e permanência de mulheres nesses espaços.
Diante desse cenário, a pesquisa “Mulheres em cargos de liderança no Executivo federal: reconhecendo desafios e identificando caminhos para igualdade” buscou ouvir os obstáculos enfrentados por 70 mulheres em cargos de liderança e os caminhos e ferramentas que elas observam como indispensáveis para ascensão profissional e permanência em posições mais altas na burocracia.
O peso da jornada dupla, a conciliação do trabalho com a maternidade e responsabilidades de cuidado, a ocorrência de episódios rotineiros de assédio e violência e uma estrutura machista no trabalho são os principais obstáculos que as mulheres relatam enfrentar. Os dados indicam que há uma cobrança excessiva e maior expectativa de excelência sobre o desempenho de mulheres em relação a homens na mesma posição (de acordo com 72,8% das entrevistadas); dificuldade de conciliação da carreira com trabalhos de cuidado, sobretudo maternidade (71,4%); e uma série de práticas, formais e informais, que reproduzem vieses e valores machistas no ambiente de trabalho (64,2%) que se desdobra, por exemplo, em indicações majoritariamente masculinas de lideranças homens (48,5%) e desrespeito com as mulheres, incluindo assédio moral (para 45,7%).
Outros dados complementam e ilustram as percepções das mulheres entrevistadas: segundo o Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, a chance de um homem em cargo de liderança ter filhos menores de idade é 3,2 vezes maior do que uma mulher na mesma posição. De acordo com o República.org, as mulheres no serviço público recebem, em média, 72% do que ganham os homens. Vale dizer também que, dentre os servidores que recebem entre 10 e 20 salários mínimos – faixa salarial mais elevada -, apenas 8,5% são mulheres negras, ao mesmo tempo em que 45,1% são homens brancos.
Nesse cenário, entre junho e outubro de 2024, o Movimento Pessoas à Frente implementou o Grupo de Trabalho Mulheres no Serviço Público, reunindo 95 lideranças e especialistas – sendo 2 coordenadoras e 13 embaixadoras temáticas – de diferentes contextos e visões em um ambiente com escuta ativa, aprendizado, troca de experiências e construção coletiva de propostas. O relatório final “Mulheres no Serviço Público Brasileiro: recomendações para acesso, ascensão e permanência”, contempla 30 recomendações de ações afirmativas para promoção de acesso ao setor público, combate à violência e assédio, desenvolvimento de lideranças femininas e transformação da estrutura de trabalho e cuidado. O documento marca o início da estratégia de incidência junto à esfera pública para avançar com políticas que ampliem a presença, de maneira sustentável e efetiva, de mulheres em posição de liderança.
Movimentos como o Elas Lideram 2030, do Pacto Global da ONU, e o Grupo Mulheres do Brasil têm tido sucesso em avançar com metas ambiciosas de mulheres em cargos de liderança no setor privado. Mais de 100 empresas já assinaram compromissos para ter, em 2025, 30% de mulheres em posições de liderança e alcançar 50% em 2030. Avançar com estratégias que responsabilizem órgãos públicos nessa direção é fundamental para uma maior equidade de gênero na administração pública brasileira.
Campanhas públicas que instiguem o imaginário de meninas e mulheres para ocupar cargos de liderança pública; inclusão da perspectiva de gênero em programas e políticas governamentais, como a Lei de Concursos Públicos e o Programa de Gestão de Desempenho; criação e fortalecimento de redes e programas de mentoria são algumas propostas presentes no documento que, se bem implementadas, podem melhorar o cenário e a experiência de mulheres no serviço público brasileiro.
Ana Diniz é professora no Insper e Coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero do Centro de Gestão e Políticas Públicas. Doutora em Administração Pública e Governo pela FGV-EAESP (Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas em São Paulo), participou da coordenação do Grupo de Trabalho Mulheres no Serviço Público do Movimento Pessoas à Frente. Se dedica aos temas de gênero, classe e raça; perspectivas feministas e interseccionais; políticas de inclusão e gestão da diversidade.
Luana Dratovsky é bacharel em relações internacionais pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), especialista em Gestão Pública pelo Insper e mestranda em Administração Pública e Governo pela FGV. Trabalhou na Secretaria Municipal de Inovação e Tecnologia de São Paulo, no (011).lab – laboratório de inovação em governo da Prefeitura. Atuou como coordenadora de inovação e desenvolvimento no Instituto Gesto/Motriz. Atualmente atua como coordenadora de articulação e rede do Movimento Pessoas à Frente.
Michelle Fernandez é doutora e mestre em ciência política pela Universidade de Salamanca e graduada em ciência política pela UnB (Universidade de Brasília). É professora e pesquisadora no Instituto de Ciência Política da UnB. É professora colaboradora na ENAP (Escola Nacional de Administração Pública). Coordena o Núcleo de Estudos sobre Estado, Burocracia e Políticas de Saúde. É pesquisadora do Núcleo de Estudos da Burocracia da FGV e pesquisadora-colaboradora do Niespe/CEE/Fiocruz. Coordenou a pesquisa “Mulheres em cargos de liderança no Executivo Federal: reconhecendo desafios e identificando caminhos para a igualdade”.
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Movimento Pessoas à Frenteé uma organização da sociedade civil, plural e suprapartidária. Com base em evidências, ajuda a construir e viabilizar propostas para aperfeiçoar políticas públicas de gestão de pessoas no setor público, com foco em lideranças. A rede de membros do Movimento Pessoas à Frente une especialistas, parlamentares, integrantes dos poderes públicos federal e estadual, sindicatos e terceiro setor, que agregam à rede visões políticas, sociais e econômicas plurais.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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