Debate
Compartilhe
Temas
Luah Tomas e Geisiele Carvalho
Apesar das vitórias, as 77 que tomaram posse precisam garantir a transferência da representação igualitária para um texto constitucional que ofereça garantias de igualdade efetiva entre gêneros
O processo constituinte chileno emanou das manifestações de 2019 que ficaram conhecidas como “estallido social”. Essa nova onda de protestos fez tremer o sistema político chileno, que convocou eleições para uma nova Assembleia Constituinte devido à pressão popular das ruas. O processo é significativo por apontar o fim de um longo ciclo de transição democrática que começou com a vitória do “Não” no plebiscito de 1988 sobre a continuidade da ditadura de Augusto Pinochet.
Além disso, a constituinte atual é inovadora ao incorporar, de forma ativa e consciente, setores da sociedade há tempos excluídos da representação política. A garantia de paridade de gênero, algo inédito no mundo, por si só já demonstra o espírito de mudança. Resultado de uma ampla mobilização de organizações de mulheres junto ao Congresso chileno – e apoiadas pela hashtag #ParidadYa –, o projeto de lei aprovado em março de 2020 determinando a paridade foi baseado em uma proposta apresentada por uma rede de cientistas políticas chilenas.
A lei exigiu não só paridade nas listas de candidatos, mas também que metade das cadeiras eleitas ficassem com mulheres. Essa lei é um avanço em relação a outra medida recente que, apesar de decretar que 40% de candidatos ao Congresso chileno deveriam ser do sexo feminino, apenas conseguiu eleger 23% de mulheres na Câmara e 28% no Senado.
A determinação de paridade de gênero na Constituinte teve a intenção de trazer legitimidade para o processo em um momento de baixíssima confiança nas instituições políticas chilenas, principalmente em relação a questões de gênero. Em uma sociedade que apenas legalizou o divórcio em 2004, as mulheres chilenas vêm lutando por seus direitos de forma intensa, especialmente após a eleição em 2006 de Michelle Bachelet, a primeira presidente mulher da América do Sul.
A mobilização feminista chilena conquistou a legalização do aborto em 2017 para casos de estupro e, apoiadas pelo movimento “Ni Una Menos” da vizinha Argentina, lutam contra o feminicídio e a violência contra a mulher de forma fervorosa desde 2018. Em face de respostas tímidas contra casos de assédio sexual e machismo em universidades chilenas, mulheres foram às ruas protestar com o canto “ Un Violador en tu Camino ”, do coletivo LasTesis, que viralizou mundo afora condenando a impunidade de assediadores e a opressão do Estado.
Como resultado, o governo chileno promulgou a Lei Gabriela na mesma época em que aprovava a paridade de gênero na Constituinte. A lei, que leva o nome de uma jovem de 17 anos assassinada por um ex-namorado, amplia a definição de feminicídio no país para contemplar todo assassinato de uma mulher por razões de gênero, ou seja, pelo simples fato de a vítima ser mulher, independentemente do grau de relacionamento do executor.
Com a garantia de paridade de gênero na constituinte surgiram novas lideranças femininas advindas não só da política, mas também da academia, da sociedade civil e da comunidade de base
A garantia de paridade de gênero na constituinte também permitiu o surgimento de novas lideranças femininas advindas não só da política, mas também da academia, da sociedade civil e da comunidade de base, o que é significativo considerando que apenas 20% das posições de poder no Chile são ocupadas por mulheres. Dentre as mulheres eleitas, 75% eram candidatas independentes de partidos políticos ,sendo que apenas 27% contavam com alguma experiência política prévia, segundo análise do Observatorio Nueva Constitución .
Apesar dessa enorme conquista, outros desafios se apresentam para as 77 mulheres que tomaram posse em 4 de julho de 2021. Entre eles está a transferência da representação igualitária para um texto constitucional que ofereça garantias de igualdade efetiva entre gêneros. No mesmo estudo do Observatorio, foi possível verificar que 57% dos constituintes (de ambos os sexos) apresentam programas com traços feministas, cujos principais temas incluem violência de gênero, direitos reprodutivos, trabalho doméstico não remunerado e igualdade salarial. Mas as representantes do sexo feminino também defendem uma variedade de outros temas, como por exemplo questões climáticas, a água como bem público e o reconhecimento do Estado como plurinacional.
Outro desafio é o de assegurar que a nova Constituição tenha mais legitimidade que a anterior, promulgada durante o governo ditatorial. Um dos eventos mais significativos no processo constituinte foi a eleição de Elisa Loncón, acadêmica da etnia Mapuche (o grupo indígena mais numeroso do Chile), para presidir os trabalhos da Constituinte. Fazendo uso de sua língua indígena em seus discursos, Loncón simboliza o silêncio da Constituição pinochetista em relação aos povos originários e o compromisso de reparar e possivelmente reconhecer a plurinacionalidade do Estado chileno.
Diversas mulheres foram eleitas por suas bases sociais e estão levando a ideia de participação cidadã à sério. Uma dessas mulheres é Constanza San Juan , ativista socioambiental que luta contra uma mineradora devido ao seu impacto em geleiras, rios e comunidades na região do Atacama. Outro nome que ganhou destaque é o de Alejandra Pérez , manifestante em 2019 que mostrou seu peito nu com cicatrizes de uma mastectomia dupla e foi eleita com um discurso em defesa da saúde. Alondra Carrillo , por sua vez, é da geração de estudantes da chamada Revolta dos Pinguins, iniciada em 2006, que demandou reformas no sistema educacional. Outra eleita é Jennifer Mella , que se identifica como lésbica e defende, além de uma linguagem inclusiva e direitos civis básicos para a comunidade LGBTI+, uma vida livre de violências. Finalmente, a representante mais jovem da constituinte vale menção. Valentina Miranda , estudante de 21 anos, conta uma história de luta da classe trabalhadora chilena e defende uma Constituição ecologista, feminista, plurinacional e intercultural .
A constituinte, até meados de outubro, vinha definindo seu regulamento interno e realizando audiências públicas com a população. A partir de agora, então, iniciam-se as discussões sobre os temas basilares da futura Constituição chilena, completamente imersos nos debates das eleições presidenciais que acontecem domingo (21).
Luah Tomas é pesquisadora de história e relações internacionais e membra do Observatório da Democracia no Mundo. Mestra pela USP (Universidade de São Paulo) e doutoranda na York University (Canadá).
Geisiele Carvalho é graduanda no Instituto de Relações Internacionais da USP e membra do Observatório da Democracia no Mundo.
Este texto é parte de uma série em que especialistas analisam o processo que culminou na assembleia constituinte chilena e como ela é afetada pelas eleições presidenciais, uma parceria entre o Nexo e o ODEC-USP (Observatório da Democracia no Mundo da Universidade de São Paulo).
Os artigos publicados no nexo ensaio são de autoria de colaboradores eventuais do jornal e não representam as ideias ou opiniões do Nexo. O Nexo Ensaio é um espaço que tem como objetivo garantir a pluralidade do debate sobre temas relevantes para a agenda pública nacional e internacional. Para participar, entre em contato por meio de ensaio@nexojornal.com.br informando seu nome, telefone e email.
Destaques