Os povos originários como vetores de uma democracia inclusiva

Debate

Os povos originários como vetores de uma democracia inclusiva
Foto: Ivan Alvarado/Reuters - 4.jul.2022

Fernando Pairican


19 de novembro de 2021

Indígenas do Chile defendem uma nova Constituição desde a década de 1980. Eles ocupam 17 dos 155 assentos na convenção que vai redigir carta magna do país

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O chamado “estallido social” série de manifestações que começaram no Chile em 2019 adquiriu uma dimensão de revolta anticolonial no caso do povo Mapuche. Na região de La Araucanía, ao sul do país, monumentos relacionados com a história da ocupação espanhola foram derrubados. Em Santiago, as manifestações resultaram na instalação de uma estátua mapuche na praça Baquedano, que os manifestantes rebatizaram como praça Dignidade. Diante dessa conjuntura, a organização ITL (Identidad Territorial Lafkenche) propôs um novo horizonte: avançar para um Estado plurinacional e intercultural. A partir de então, a perspectiva de interculturalidade ganhou adeptos de segmentos mapuche e de chilenos que enxergam uma oportunidade política para desmantelar estruturas coloniais.

No entanto, para conquistar esse horizonte é necessário reverter algumas estruturas que não permitem o exercício democrático de povos originários. Isso começou a mudar em novembro de 2019, quando o parlamento convocou um processo constituinte para redigir uma nova Constituição. Apesar disso, alguns setores críticos não compartilharam o entusiasmo do acordo, acusando-o de ser apenas um ato da classe política para evitar a revolta social. Outra linha de interpretação afirmou que seria possível avançar com o processo aberto que determinará a redação de uma nova Constituição.

Os povos indígenas defendem uma nova Constituição desde a década de 1980. Essa história se vincula à refundação capitalista neoliberal da ditadura militar chilena, que decretou em 1979 o fim da propriedade coletiva e a transferência à propriedade individual. Muitos, em busca de trabalho ou por opção, deixaram suas terras para viver nas periferias dos principais centros urbanos, iniciando um processo de diáspora. A partir daí surgiu o conceito de “Mapurbe”, os mapuches urbanos.

Esse diagnóstico foi debatido por membros mapuche que trabalharam para fixar as bases da plurinacionalidade, começando pelo fato de que a bandeira mapuche Wenüfoye foi o principal emblema das manifestações de 2019. Isso resultou na solicitação de Assentos Reservados na constituinte para os sete povos indígenas reconhecidos pela Lei Indígena de 1992. Além disso, foi proposto que os esses assentos fossem divididos demograficamente entre cada povo e que pessoas mapuche pudessem votar mesmo não vivendo em seus territórios originários. Não foi uma tarefa fácil, já que o debate foi adiado por setores à direita que tentaram evitar seu desenvolvimento afirmando não existir altos níveis de discriminação.

Povos indígenas ajudam a construir uma nova Constituição no Chile, o que demonstra a viabilidade e a disposição de processar o conflito indígena por meio da institucionalidade

No total, 17 assentos foram reservados dentre os 155 totais. O povo Mapuche ficou com sete, o Aymara com dois, e outros oito povos ficaram com um cada. Isso demonstrou a viabilidade e a disposição de processar o conflito indígena por meio da institucionalidade. No interior dos povos originários, o projeto de fortalecer a plurinacionalidade como um eixo articulado foi agregando adeptos, assim como o direito mãe de todos os povos indígenas: a autodeterminação.
Desde o princípio, os(as) constituintes dos Assentos Reservados decidiram que uma mulher indígena deveria ser presidente do processo constituinte e mobilizaram alianças para fazer isso acontecer. Elisa Loncón , da etnia mapuche, foi eleita por sua trajetória política e histórica e disse em seu discurso: “esta Convenção que hoje me toca presidir transformará o Chile em um Chile plurinacional, em um Chile intercultural, em um Chile que não atenta contra os direitos das mulheres, os direitos das cuidadoras, em um Chile que cuide da mãe terra, em um Chile que limpe as águas, em um Chile livre de toda dominação. Uma saudação especial aos lamngen mapuche de Wallmapu, este é um sonho de nossos antepassados, este sonho hoje se faz realidade”.

Desde o início, Loncón sofreu assédios da direita e da imprensa opositora. Seu discurso foi assinalado como inapropriado e, ao falar em mapuzungun (sua língua mapuche), foi também criticada. Atos de racismo explícitos e ocultos buscaram forjar uma ruptura de credibilidade, além da falta de apoio material do governo chileno ao processo constituinte. Simultaneamente cresceu o movimento social pela autoderminação, que incentivou novas atividades de recuperação de terras em regiões indígenas e atos de violência política que tiveram seu clímax com a morte do mapuche Pablo Marchant.

Apesar dos problemas do processo político, os constituintes continuaram trabalhando em favor dos direitos coletivos do povo mapuche, conseguindo desenhar as bases da futura Constituição. Das sete comissões temáticas, duas serão presididas por constituintes mapuche.

Como toda mudança política, há tentativas de paralisar o processo em marcha. Mesmo assim, como disse Loncón, a plurinacionalidade é um convite a uma nova forma de pensar a democracia. Isso não nega a nação e é uma resposta à negação da diversidade, criando um conceito distinto de organização que resgata a pluralidade de visões étnicas e culturais para repensar o Estado. Significa direitos coletivos e individuais. Também busca reverter o racismo, pondo fim à segregação econômica, política e social.

Portanto, a plurinacionalidade é um exercício de democracia includente. Não é apenas um reconhecimento passivo da diversidade dos povos e nacionalidades. É um conceito polissémico, que dependerá de cada sociedade equipá-la de conteúdos com base na especificidade de seu povo, considerando o seguinte horizonte: tolerar e celebrar a diversidade. Por isso, a plurinacionalidade não pensa somente nos povos indígenas, mas sim na amplitude e heterogeneidade da sociedade.

O futuro e o horizonte político estão abertos. Como disse o constituinte mapuche Adolfo Millabur em outubro de 2021, “aqui estamos pela primeira vez os povos organizados, políticos, conscientes que ganhamos estes espaços depois de anos e anos de trabalho de construção social. As primeiras nações defendem aqui a autonomia, a autodeterminação dos povos, a desconcentração de poder, a plurinacionalidade, a interculturalidade e o princípio de Itrofill Mongen”. Este princípio pode ser traduzido, grosseiramente, como “todas as vidas sem exceção”.

Tradução de Luah Tomas.

Fernando Pairican é acadêmico de antropologia da PUC-Chile (Pontifícia Universidade Católica do Chile) e pesquisador do Viodemos (Instituto para Pesquisa em Violência e Democracia).

Este texto é parte de uma série em que especialistas analisam o processo que culminou na assembleia constituinte chilena e como ela é afetada pelas eleições presidenciais, uma parceria entre o Nexo e o ODEC-USP (Observatório da Democracia no Mundo da Universidade de São Paulo).

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