As duas faces do Janus chileno e a polarização antissistema

Debate

As duas faces do Janus chileno e a polarização antissistema
Foto: Ivan Alvarado/Reuters - 18.nov.2021

Felipe Loureiro


20 de novembro de 2021

Um fator importante une o avanço da esquerda e da extrema direita na disputa presidencial: ambas estão fora do sistema político tradicional

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Neste domingo (21) ocorrem as mais importantes eleições presidenciais do Chile desde a redemocratização do país, em 1990. Em jogo não estão apenas os próximos quatro anos do mandato presidencial (2022-2026), mas a própria democracia chilena.

Um lado da sociedade olha para o futuro, similar à divindade romana bifronte Janus, deus da transformação, com uma das suas faces sempre voltada para o porvir.

Essa face do Chile está representada pela esperança que o processo constituinte abriu para milhões de cidadãos, sobretudo com a perspectiva de construir bases legais para combater a grave desigualdade social do país e a crônica falta de legitimidade das instituições políticas advindas da ditadura.

O lado oposto da face do Janus chileno, porém, olha para o passado, expresso pela rápida ascensão do líder de extrema direita José Antonio Kast nas pesquisas de opinião para presidente.

A não ser que tenhamos tido um maremoto nessas últimas duas semanas – a lei eleitoral chilena proíbe a divulgação de pesquisas eleitorais próximas ao pleito -, tudo indica que Kast irá para o segundo turno em 19 de dezembro com o esquerdista e ex-líder estudantil Gabriel Boric.

O Chile nos dá um nó na cabeça ao ter eleito uma assembleia constituinte majoritariamente de esquerda e agora apresentar um líder de extrema direita em primeiro lugar nas pesquisas de opinião presidencial

Nostálgico da ditadura militar de Augusto Pinochet (1973-1990) e profundo admirador de Bolsonaro e Trump, Kast é partidário ferrenho do modelo econômico neoliberal pinochetista e da necessidade de garantia de “ordem” na sociedade.

Para Kast, o atual governo de direita do Chile de Sebastián Piñera titubeia na defesa da lei, tendo sido pouco duro contra os “baderneiros” e os “deliquentes” que estiveram por trás das gigantescas manifestações sociais de outubro de 2019 – parteiras do processo constitucional em curso.

Vale lembrar que Piñera decretou 20 estados de emergência em diferentes regiões do país durante o contexto das manifestações, tendo sido acusado de milhares de violações de direitos humanos contra manifestantes, incluindo prisões arbitrárias, tortura e assassinato – 34 pessoas morreram durante os protestos, cinco comprovadamente devido à ação da polícia.

Para Kast, porém, isso não foi suficiente.

O mesmo vale, na visão de Kast, para as ações do governo Piñera contra os “terroristas” mascarados de “indígenas” da região sul do país, sobretudo envolvendo os conflitos de terra da região de Auracanía.

Apesar de a província de Auracanía estar atualmente sob estado de emergência, Kast ainda enxerga o estado como muito tímido na defesa da ordem contra o que denomina de “terrorismo”.

Claro, em que pese seu descaso para com a vida dos ditos “inimigos da pátria”, Kast é, sim, um defensor da vida, mas da vida dos fetos e dos chamados “cidadãos de bem”, sobretudo daqueles que constituem família heteronormativa.

Para Kast, a família é uma das mais fundamentais instituições chilenas, junto com os garantidores da ordem, ou seja, a polícia e as Forças Armadas.

Tanto é que, em seu programa de governo, Kast recomenda conceder subsídios habitacionais apenas a mulheres casadas que tiverem no mínimo dois filhos. Sim, você leu corretamente.

Kast também constrói uma versão chilena do nativismo chauvinista de Trump ao sinalizar políticas duras contra imigrantes ilegais – retórica e indiretamente identificados com o narcotráfico, a prostituição e a violência -, propondo a construção de fossos como “barreiras físicas” na fronteira norte do Chile com Peru e Bolívia.

Como se pode ver, Kast representa uma profunda rejeição da necessidade de se redigir uma nova Constituição para o Chile. Ao contrário das principais agremiações de direita, seu partido não chancelou o acordo de novembro de 2019, que lançou as bases para o processo constituinte atual.

Não só, todo o ideário político de Kast expressa a mais profunda repulsa ao conteúdo normativo democrático e inclusivo que a constituição provavelmente terá, sobretudo em termos de garantia de direitos sociais de saúde, educação e previdência – hoje essencialmente sob hegemonia do mercado e de atores privados – e da consagração de novos direitos, entre os quais direitos ambientais e direitos de minorias (mulheres, indígenas, cidadãos LBGTI+).

Como o Chile resolverá essa contradição fundamental entre suas duas faces?

Eleger um presidente durante um processo constituinte já é uma tarefa complexa e delicada; ter Kast como presidente, porém, tornará essa tarefa muito mais difícil, quiçá impossível.

O acordo que abriu o processo constituinte previu dois plebiscitos: um no início, para verificar o desejo popular por uma nova Constituição – vencido por ampla maioria, apesar da alta taxa de abstenção, 49,7% -; e outro ao final, para ratificar a carta a ser redigida pela assembleia eleita.

Alguém tem dúvida de que Kast, caso escolhido presidente, fará de tudo para impedir que uma constituição progressista seja ratificada nesse segundo plebiscito?

É certo que o Chile nos dá um nó na cabeça ao ter eleito uma assembleia constituinte majoritariamente de esquerda e agora apresentar um líder de extrema direita em primeiro lugar nas pesquisas de opinião presidencial.

Em que pese a grande polarização que toma conta do país, um fator importante une o avanço da esquerda e da extrema direita chilenas: ambas estão fora do sistema político tradicional.

Extraordinários 67% dos deputados constituintes elegeram-se sem filiação partidária; grande parte foi eleita a partir de listas de independentes.

Gabriel Boric, segundo lugar nas pesquisas presidenciais, é parte dessa onda, apesar de sua coalizão contar com partidos consolidados, como o Comunista.

Kast, por sua vez, rompeu com o establishment dos partidos de direita (UDI e RN) já em 2017, quando se lançou candidato a presidente fora da coalizão direitista, e vem se apresentando, desde então, como um líder excepcional e fora da política, que ele denomina de corrupta e nepotista.

A questão é saber qual dos dois lados anti-establishment a sociedade chilena vai escolher.

O fato é que a elite política chilena, da direita à esquerda do espectro político, havia atingido importante consenso em novembro de 2019, no auge das maiores manifestações da história do país: para estabilizar o Chile, é preciso mudar.

A constituinte apareceu como a grande chance de se dotar o sistema político nacional de maior legitimidade e capilaridade sociais, virando a página da ditadura militar pinochetista.

Kast expressa uma profunda reação a esse consenso, representando o retorno de um passado que, se concretizado, colocará em risco o próprio processo constituinte, com graves repercussões não somente para o Chile, mas para toda a América Latina.

Felipe Loureiro é professor associado do IRI-USP (Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo) e coordenador do ODEC-USP (Observatório da Democracia no Mundo).

Este texto é parte de uma série em que especialistas analisam o processo que culminou na assembleia constituinte chilena e como ela é afetada pelas eleições presidenciais, uma parceria entre o Nexo e o ODEC-USP.

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