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Bruna Ferreira
Apesar dos grandes desafios que as intersecções entre gênero e mudança do clima escancaram, há caminhos importantes sendo trilhados
A ideia de que a crise climática não é neutra em termos de gênero tem sido bastante repetida. Mas o que isso significa na prática? Ainda, quais esforços têm sido feitos no sentido não apenas de entender profundamente esse panorama, mas também de propor soluções concretas e desde as perspectivas dos grupos mais impactados por esse fenômeno?
Segundo o relatório Justiça Climática Feminista: um Quadro para Ação (2023) da ONU Mulheres, caso o cenário de aumento de 3°C na temperatura do planeta se concretize, mais de 158 milhões de mulheres e meninas serão levadas à pobreza até 2050 – 16 milhões a mais do que o número esperado para homens e meninos no mesmo cenário. Além disso, 236 milhões de mulheres e meninas poderão sofrer com a insegurança alimentar – 131 milhões a mais do que o número esperado entre homens e meninos. Essas estatísticas demonstram o quão desproporcionais são os impactos das mudanças do clima sobre as mulheres. Além disso, refletem como as desigualdades de gênero, associadas a outras desigualdades, tais como àquelas que têm como base raça e classe social, são intensificadas no contexto da emergência climática.
Voltando ao ponto inicial deste artigo, a crise climática não é neutra, mas não somente em termos de gênero. Segundo relatório de 2022 do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU), na América do Sul, uma das regiões do globo onde se concentram países considerados vulneráveis à emergência climática, exemplos de populações locais mais suscetíveis a esses fenômenos incluem povos indígenas e populações vivendo em habitações informais. Também nesse contexto, o estudo Quem Precisa de Justiça Climática no Brasil?, do Observatório do Clima, indica que os impactos das mudanças do clima são ainda mais severos nas intersecções de diferentes relações de poder, portanto, entre mulheres negras, indígenas, quilombolas, pertencentes a comunidades tradicionais, que vivem na periferia, etc.
As chuvas intensas no Rio Grande do Sul, em maio deste ano, que acarretaram destruição e enchentes devastadoras, compõem uma amostra do que pode ser o futuro do planeta. Isso caso medidas urgentes não sejam adotadas pelos países, no sentido de limitar o aumento médio da temperatura global bem abaixo dos 2°C até o final do século – objetivo que consta no Acordo de Paris. Os chamados eventos climáticos extremos têm se tornado cada vez mais frequentes e devastadores, gerando perdas materiais e econômicas, danos à saúde e ao bem-estar das populações, além da perda de vidas.
Para as mulheres, a essas perdas geradas pelos eventos climáticos extremos deve ser adicionado um aumento agudo das vulnerabilidades às quais estão expostas. As desigualdades que constituem as sociedades em “tempo normais”, ou seja, fora desses períodos de crise, são exacerbadas a tal ponto que as mulheres, e alguns grupos de mulheres mais que outros, se tornam ainda mais expostas a determinadas violências e violações que têm como base o gênero.
Apesar de serem mais afetadas pela emergência climática, as mulheres estão sub-representadas em processos de tomada de decisão e na formulação de políticas relacionadas ao clima
Os relatos de abuso sexual contra mulheres dentro de abrigos que foram montados para receber a população atingida no Rio Grande do Sul, infelizmente, compõem um quadro mais amplo que aponta justamente para o aumento da violência de gênero em tempos de crise, inclusive de crise climática. A seca que atingiu a região conhecida como o Chifre da África em 2022 resultou em um aumento de quase quatro vezes na ocorrência de casamento infantil em áreas afetadas da Etiópia e, na Somália, episódios de violência e estupro cometidos por parceiros subiram 20%, aponta relatório da ONU Mulheres. Ainda segundo esse documento, os avanços conquistados duramente em direção à igualdade de gênero nas últimas décadas, sem ações para conter o avanço das mudanças no padrão do clima a nível mundial pode resultar em uma reversão total na conquista de direitos humanos das mulheres.
Ressalta-se ainda que apesar de serem desproporcionalmente afetadas pela emergência climática, as mulheres estão sub-representadas em processos de tomada de decisão e na formulação de políticas relacionadas ao clima. Por exemplo, estudo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas aponta que na COP26, realizada no final de 2021, as mulheres correspondiam a 37% das delegações dos países, e quando o tema refere-se ao tempo total de fala nesse espaço, as mulheres ocuparam somente 29% do mesmo.
A despeito dos grandes desafios que as intersecções entre gênero e mudança do clima escancaram, há caminhos importantes sendo trilhados. O Grupo de Trabalho “Empoderamento de Mulheres” do G20, que em 2024 é presidido pelo Brasil, é um deles. O GT é bastante recente, tendo sido criado em 2023 sob a presidência da Índia, e busca tratar das desigualdades de gênero e impulsionar o empoderamento das mulheres em diferentes dimensões.
Durante a presidência brasileira, Justiça Climática foi definido como um dos três temas prioritários do GT, que é coordenado pelo Ministério das Mulheres. A partir da aprovação dos países-membros e de países e entidades convidados, foram estabelecidos quatro planos de entrega a respeito do tema mulheres e justiça climática. Esse planos incluem:
Esse movimento de centralização dos nexos entre gênero e mudança do clima, iniciado durante a presidência brasileira do G20, reflete a urgência do tratamento da temática nos níveis nacional e internacional. Certamente, essas discussões continuarão se expandindo, na medida em que os efeitos da crise climática são sentidos mais intensamente em todo o globo, aprofundando desigualdades já existentes. Ao mesmo tempo, com esse movimento, o Brasil não apenas demonstra que o debate deve ser priorizado, mas também tem condições de moldá-lo, ressaltando a necessidade de um olhar interseccional para pensar os impactos da emergência climática que, definitivamente, não são sentidos do mesmo modo em todo o mundo. Estudos apontam que os países mais pobres – e aqui a ênfase deve ser dada ao Sul Global – não têm as mesmas condições para o enfrentamento às mudanças climáticas, o que os torna desproporcionalmente suscetíveis aos seus efeitos. Uma consequência desse cenário, como já apontado aqui, é o aprofundamento de desigualdades existentes.
O Brasil também pode e deve trazer para o centro das discussões do GT “Empoderamento de Mulheres” o ativismo climático brasileiro, especialmente aquelas iniciativas de mulheres e/ou lideradas por mulheres em sua grande diversidade. É fundamental incluir práticas e conhecimentos das comunidades mais impactadas, de modo a construir políticas robustas que tenham como objetivo a justiça climática.
Contudo, a simples inclusão dessas perspectivas não é suficiente. Seguindo a teoria de justiça da filósofa Nancy Fraser, utilizada no relatório Justiça Climática Feminista (2023) da ONU Mulheres, a justiça climática requer: reconhecimento e respeito pela diversidade de identidades, experiências e formas de conhecimento; redistribuição de recursos; e representação e participação significativa de mulheres e grupos marginalizados nos processos de tomada de decisões relacionados ao clima. Espera-se, desse modo, que o trabalho e os encaminhamentos a partir da presidência brasileira do G20 reflitam essas necessidades. Afinal de contas, enfrentar as mudanças do clima requer confrontar desigualdades estruturais.
Bruna Ferreira é coordenadora de pesquisa do Centro Soberania e Clima. Também é doutoranda em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, onde pesquisa o Movimento de Mulheres Curdas.
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