Pobreza, o elo perdido do desmatamento zero

Ensaio

Pobreza, o elo perdido do desmatamento zero
Foto: Nacho Doce/Reuters

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Petterson Molina Vale


23 de dezembro de 2017

Faltam estudos sobre os impactos das políticas de preservação das florestas sobre o bem-estar humano, especialmente no caso das famílias de baixa renda que sobrevivem da pecuária

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O desmatamento agrega ao PIB (Produto Interno Bruto) apenas 0,013% ao ano, comunica o jornal Folha de S. Paulo sobre a apresentação de um grupo de ONGs na Conferência do Clima, em Bonn, na Alemanha, em novembro de 2017. Seria assim tão baixo, então, o custo de zerarmos o desmatamento? Talvez não, especialmente para os novos pobres rurais do Brasil.

Em menos de uma geração, o mundo viu a Amazônia converter uma área maior do que o estado de Minas Gerais a usos agropecuários. Mais tarde, o desmatamento caiu surpreendentes 83%. Já no passado mais recente, houve novo incremento da área total desmatada, com alta de 45% com relação a 2012 (dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, INPE).

Onde entra a pobreza em tudo isto? Uma característica marcante da pobreza pela ótica da renda é que, se somarmos os rendimentos de todas as pessoas consideradas pobres, teremos uma parcela ínfima do PIB. E mesmo assim, as famílias e pessoas em situação de pobreza constituem um dos estratos da população que mais merecem a atenção da política pública.

O papel da pobreza sobre o desmatamento, e do desmatamento sobre a pobreza, não pode ser ignorado. Apesar disso, há uma ausência generalizada de reflexão sobre como o crescimento da pobreza e extrema pobreza que veio com a crise política e social pós-2013 se relaciona com a alta do desmatamento no mesmo período.

Um estudo do Instituto Escolhas publicado em novembro de 2017 estima que o custo de uma política de desmatamento zero – em que regras mais restritivas do que a legislação atual sobre o desmatamento são impostas – pode ser de R$ 3,1 bilhões por ano até 2030. Como qualquer estimativa, esse número tem limitações. Por exemplo, o estudo ignora os benefícios – em termos de preservação da biodiversidade, estocagem de carbono, etc – da preservação de 13,72 milhões de hectares adicionais de florestas. Mas não ignora o papel da pobreza.

Qual é o efeito do desmatamento zero sobre as parcelas economicamente vulneráveis das regiões que mais terão que contribuir para eliminar o desmatamento?

O estudo do Instituto Escolhas começa a responder a essa pergunta, com uma série de ressalvas. Os autores estimam que, no caso do Pará e Mato Grosso, haverá uma queda de 6% na renda dos trabalhadores com menor qualificação. Mas, na realidade, esse valor provavelmente subestima o impacto verdadeiro.

Em primeiro lugar, devido aos custos omitidos no estudo. O modelo econômico usado funciona como se a transição para uma atividade econômica que não depende do desmatamento fosse imediata, sem nenhum custo. É como se os trabalhadores encontrassem um novo emprego no dia seguinte, apenas com salário 6% inferior. No mundo real, essa transição pode ter outras implicações antes que se atinja o novo equilíbrio de renda, especialmente para pessoas com baixa educação e diferentes tipos de vulnerabilidade socioeconômica.

Além disso, é preciso reconhecer que as parcelas mais vulneráveis das populações rurais são fortemente dependentes da pecuária, a atividade mais impactada pelo desmatamento zero.

Seja para o leite ou para a criação de bezerros, as vacas são ao mesmo tempo fontes de renda e poupança para os pobres rurais, principalmente nas fronteiras agropecuárias. Essa é uma realidade histórica do Brasil e da quase totalidade dos demais países.

Para piorar, nos últimos anos houve aumento substancial da pobreza extrema. Os infográficos publicados pelo Nexo mostram isso com clareza. Segundo o economista Marcelo Neri , somente em 2015 os 5% mais pobres tiveram uma queda de 14% na renda, em média. Isso coincidiu com o aumento do desmatamento na Amazônia de um patamar de 4.500 km² ao ano para um patamar quase 50% superior. A incidência de fogos também cresceu substancialmente no mesmo período.

Considere esta afirmação: é muito provável que a queda inesperada da renda dos que já eram pobres nas áreas rurais os tenha levado a avaliar os benefícios do desmatamento e, eventualmente, a se engajarem numa atividade que nada tem de atraente. Coibir essa opção econômica pode significar fechar a única porta acessível a muitas famílias. A saída poderá ser a migração às periferias das cidades.

Por fim, um argumento ético. Uma queda de 6% no salário de uma família pobre não pode ser equiparada a uma queda de igual magnitude no salário de uma família de classe média. Os impactos são muito distintos.

Conclusão: a estimativa de 6% de perda para os mais vulneráveis é um valor mínimo.

Mas e os benefícios que não foram computados no cálculo do custo do desmatamento zero (voltando ao assunto do começo do artigo)? Eles são de difícil mensuração, razão pela qual tiveram de ser ignorados. Mas um exercício mental simples pode ajudar. O impacto positivo da redução do desmatamento recai sobre os cidadãos de todo o mundo, notadamente pela via das mudanças climáticas. Consequentemente, os benefícios para as populações locais são apenas uma fração do benefício total.

O inverso se aplica aos custos do desmatamento zero. O esforço de mudança de padrão de uso da terra se concentra nas regiões de fronteira agropecuária, onde há mais famílias pobres e vulneráveis. Sobre esses grupos recai a maior parte do custo de transição, mas apenas uma parte do benefício da mudança.

Qual é, então, o remédio para o desmatamento? A sociedade brasileira teceu, a duras penas, um grande acordo que culminou no novo texto do Código Florestal, de 25 de maio de 2012. O longo debate legislativo incorporou à legislação provisões de proteção aos pequenos proprietários rurais. Desde então, um esforço liderado pelo Ministério do Meio Ambiente e apoiado por amplas parcelas do empresariado, ONGs e produtores rurais, permitiu a construção do maior cadastro geoespacial de propriedades rurais do mundo, o CAR (Cadastro Ambiental Rural).

O CAR é um instrumento ambiental que conta com crescente legitimidade social, e cujos efeitos sobre a governança do desmatamento já foram reconhecidos em diversos estudos. Ele é uma das peças de um arcabouço institucional voltado à recuperação de áreas desmatadas e ao desestímulo à abertura de novas áreas. A implementação e aprimoramento desses instrumentos pode permitir novos avanços no controle do desmatamento.

No atual contexto de crise social, todavia, a política ambiental deve internalizar o papel social das economias de fronteira que continuam surgindo. Os assentados da reforma agrária, por exemplo, precisam utilizar as suas terras para a produção agropecuária, de forma que algum desmatamento, dentro do limite legal, precisa ser autorizado pelos órgãos competentes. Infelizmente, não é o que acontece hoje. Além de ganharem a precária condição de assentados, essas pessoas correm o risco de se tornarem criminosos ambientais mesmo que estejam operando dentro dos parâmetros legais. Isso precisa ser revisto.

Petterson Molina Valeé pesquisador no departamento de economia da USP Ribeirão  e no Nelson Institute of Environmental Studies da Universidade de Wisconsin-Madison (EUA).

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