Desde sua criação, em 2003, o Ministério das Cidades tem como finalidade coordenar, fomentar e financiar políticas públicas que enfrentam problemas centrais das cidades brasileiras, como moradia, saneamento, mobilidade e regularização fundiária. São temas de competência concorrente aos três entes da federação, ainda que o uso e ocupação do solo sejam de competência exclusiva dos municípios desde a Constituição de 1988. Isso faz com que, na prática, recaia em grande medida sobre os municípios o planejamento e/ou gestão de todas essas políticas.
Sabemos que a capacidade fiscal no nível local é em geral bastante inferior às demandas. De acordo com levantamento realizado pelo jornal Folha de S.Paulo, os recursos de 70% dos municípios brasileiros dependem em mais de 80% das transferências federais do Fundo de Participação dos Municípios. Os municípios também recebem parte da arrecadação de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) e IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores) dos estados. Dessa forma, é possível afirmar que a maioria das cidades gera receitas próprias muito inferiores aos gastos públicos.
Diante da complexidade e abrangência das competências dos municípios e do descompasso de suas capacidades fiscais, o papel de coordenador e financiador exercido pelo Ministério das Cidades é fundamental para que as ações voltadas às graves questões que atingem as cidades cheguem a resultados satisfatórios. Ainda que as políticas públicas do Ministério das Cidades representem iniciativas muito novas e com forte necessidade de aprimoramento para atingir seus objetivos, uma proposta de eliminação dessa pasta por parte do governo federal abortaria a gestão coordenada das iniciativas elaboradas, certamente dificultando ainda mais os desafios a serem enfrentados nas cidades brasileiras. Para agravar esse cenário, lembremos que 84% da população brasileira, ou seja, 160 milhões de pessoas, vivem em áreas urbanas, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2010.
Os programas promovidos pelo Ministério das Cidades envolvem temas, questões e ações que são interconectados nas cidades e que justificam a articulação institucional prevista desde sua criação. Segundo o Relatório de Gestão do exercício de 2017, há 24.969 contratos em andamento registrados com recursos do Orçamento Geral da União em todas as secretarias do ministério. Além disso, somente em 2017, R$ 64,85 bilhões do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) foram usados em programas de habitação, saneamento e infraestrutura. E o agente gestor dessa aplicação é o Ministério das Cidades.
O papel de coordenação exercido pelo Ministério das Cidades não tem como finalidade apenas nortear os objetivos de cada política, mas facilitar o planejamento articulado de forma intersetorial
A Secretaria Nacional de Transporte e da Mobilidade Urbana tem 1.138 contratos do Orçamento Geral da União em andamento que tratam de ações, estudos, planos e projetos sobre transporte coletivo público hidroviário, sobre pneus e sobre trilhos, equipamentos e sistemas de mobilidade urbana, medidas de moderação de tráfego, pavimentação e qualificação de vias, além de transporte não motorizado. Programas e ações de assistência técnica, provisão habitacional, requalificação de imóveis e urbanização estão em andamento na Secretaria Nacional de Habitação totalizando 3.488 contratos. Já a Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental possui obras, ações, estudos, projetos de abastecimento de água, drenagem urbana, esgotamento sanitário, infraestrutura urbana, manejo de águas pluviais, resíduos sólidos e ações em desenvolvimento institucional, totalizando 19.884 contratos com recursos do Orçamento Geral da União. Elaboração de plano diretor, plano municipal de redução de riscos, requalificação de espaços de uso público, reabilitação urbana e regularização fundiária estão entre as principais ações com contratos em andamento pelo Ministério das Cidades na Secretaria Nacional de Desenvolvimento Urbano.
Dentre os importantes resultados alcançados pelo ministério ao longo dos 15 anos de sua existência estão a estruturação do Sistema e do Fundo Nacional de Habitação, os programas de Saneamento Ambiental, o arcabouço regulatório da mobilidade urbana, a bem-sucedida campanha em prol dos planos diretores e os inovadores programas nacionais de regularização fundiária. Ganharam destaque nacional, no entanto, dois programas geridos pelo Ministério das Cidades: as ações urbanas do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento, e o Minha Casa Minha Vida.
Foi por meio do PAC, criado em 2007, que a urbanização de favelas ganhou escala nacional, propiciando, somente no PAC 1, de 2007 a 2010, mais de R$ 24,6 bilhões contratados em obras e ações em assentamentos precários. Já o Minha Casa Minha Vida, criado em 2009, atingiu a marca de 5,3 milhões de unidades habitacionais contratadas de 2009 a 2018. Especialmente durante a primeira fase do programa foi priorizada a chamada Faixa 1, que atende famílias com renda até três salários mínimos e corresponde a 90% do déficit habitacional do país – entre 2009 e 2011, 48% das 811 mil unidades entregues foram destinadas a esta faixa. Apesar de o programa já ter demonstrado enormes desafios e problemas a serem superados, uma eventual extinção do Ministério das Cidades só ampliaria as questões relativas à destinação dos recursos a habitação social, à qualidade dos projetos e a priorização da demanda social.
É importante salientar que parte considerável dos 5.570 municípios brasileiros não conta com equipe técnica especializada para formulação de políticas de desenvolvimento urbano, a exemplo dos planos diretores, exigidos para municípios com mais de 20 mil habitantes. O papel de coordenação exercido pelo Ministério das Cidades não tem como finalidade apenas nortear os objetivos de cada política, mas facilitar o planejamento articulado de forma intersetorial – isto é, entre as diferentes políticas setoriais como mobilidade, saneamento e habitação, e também interfederativo, envolvendo estados e municípios em regiões metropolitanas, por exemplo.
Dessa forma, é razoável prever que seria mais difícil viabilizar tais articulações, tão necessárias para a resolução dos complexos problemas urbanos, sem contar com o Ministério das Cidades. Um dos desafios do órgão é justamente um aprofundamento da capacidade de articulação das políticas, programas e ações integrados em âmbito metropolitano, para enfrentar a urgência dos passivos urbanos nas metrópoles brasileiras. O desenho das políticas do Ministério das Cidades já contava com um importante critério de priorização para distribuição de recursos em áreas metropolitanas, mas o desenvolvimento de uma política específica seria o próximo passo.
“Questões relativas a “mudanças constantes no corpo diretivo da pasta,” como aponta o Relatório de Gestão citado, problemas de fluxo de caixa para os recursos do Orçamento Geral da União, descontinuidade de programas entre outros pontos estão deteriorando a capacidade de articulação e a efetividade das ações do Ministério das Cidades, requerendo avanços necessários e urgentes nas políticas existentes. Tratam-se de desafios comuns a diferentes pastas e que precisam ser enfrentados, numa incessante busca pelo aperfeiçoamento das políticas públicas.
Considerando esses desafios e dificuldades, ressalta-se a importância da manutenção e reestruturação da pasta, de forma a sustentar a resolução de problemas urbanos que atingem a maioria da população brasileira. Um modelo que leve à extinção do Ministério das Cidades significa que a política urbana e a regulação fundiária, sem qualquer diretriz programática geral, ficariam totalmente relegadas aos municípios e, assim, mais dependentes do jogo de alianças das disputas políticas com o mercado privado. Nesse campo de interesses, já sabemos que o objetivo não resulta na superação dos problemas urbanos estruturais das cidades brasileiras.
Carolina Heldté arquiteta e urbanista, professora na Universidade São Judas Tadeu, pesquisadora e consultora do Cities Alliance e doutoranda do IAU USP. Representante do IABsp (Instituto dos Arquitetos do Brasil, São Paulo).
Luciana Royeré arquiteta e urbanista, doutora e professora na FAU USP, pesquisadora do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos. Foi gerente de projetos no Ministério das Cidades. Vice-presidente do IABsp.
Marcela Ferreira é arquiteta e urbanista, coordenadora de projetos no Urbem, pesquisadora e consultora. Mestranda em Gestão e Políticas Públicas na Fundação Getúlio Vargas. Membro da diretoria do IABsp.