Criando ambiência para inovar no setor público

Ensaio

Criando ambiência para inovar no setor público
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Luana Silveira de Faria


18 de março de 2022

Faltam ambientes de segurança psicológica para pessoas e ideias se conectarem e para que os servidores coloquem suas competências sociocomportamentais em prática

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A SGP (Secretaria de Gestão e Desempenho de Pessoal) do Ministério da Economia é o órgão central de gestão de pessoas no Poder Executivo Federal. Isso significa que as diretrizes, normas e ações da Secretaria impactam a vida de todos os servidores e servidoras da Administração Pública Federal, em cerca de 180 órgãos do governo federal.

As áreas de gestão de pessoas são historicamente entendidas como locais burocráticos e focados em processos. Além disso, grande parte das ações no sentido de melhorar o bem-estar dos servidores e servidoras refere-se a atividades pontuais, como aulas de yoga, meditação e coral. Elas são importantes, mas funcionam como mitigadores, aliviando o estresse, as dores físicas e o sofrimento mental, por exemplo, que têm causas muito mais profundas.

Em 2019, tive uma ideia e mergulhei em pesquisa e observação para entender o desafio que estava à minha frente. Era clara a necessidade de uma visão empática da realidade das pessoas, com pensamento sistêmico das políticas e ações e uma mudança de comportamento voltada para a experimentação das políticas de gestão de pessoas e ações antes de implementá-las em larga escala. Mais ainda, precisávamos transformar a gestão de pessoas a partir dos parceiros mais importantes nesse processo: os usuários – nesse caso, os próprios servidores públicos – e a secretaria era o lugar mais oportuno para gerir essa iniciativa.

Criei um laboratório de inovação em governo, o primeiro com foco na melhoria da experiência do servidor (tradução livre de “employee experience”). O LA-BORA! gov tem como propósito apoiar órgãos e pessoas a inovar em gestão de pessoas e gerar valor público. Essa missão envolve aproximar os servidores dos cidadãos e incentivar lideranças a trabalhar com empatia e foco em pessoas. Com isso, os servidores são empoderados e fazem parte da solução, criam senso de responsabilidade e se conectam mais ativamente com esse processo. O resultado é maior engajamento e produtividade.

Desde o início, tudo no laboratório foi feito com e por servidores: o nome (LA-BORA! gov), o propósito, os valores, os serviços que ofertamos , tudo foi cocriado. Ao longo de dois anos (2020 e 2021), realizamos 183 oficinas, mentorias e palestras, com mais de 30 mil servidores diretamente impactados, de mais de 50 órgãos diferentes. Ainda mais importante do que esses números, é o impacto deles: 98% dos usuários dos serviços avaliaram a experiência como boa ou excelente e 98% disseram que participariam novamente de ações do LA-BORA! gov.

Abandonamos a visão romantizada de que todos precisam ser motivados e felizes o tempo todo no trabalho. Sem esses discursos evasivos conseguimos focar no que realmente importa

Um dos projetos avaliados pelos usuários é a “Prateleira de Serviços”, ação contínua que visa a apoiar servidores a desenvolver competências de inovação. São oficinas colaborativas, abertas a todos os servidores, em que disseminamos conhecimentos e promovemos espaços de escuta, com experiências imersivas, “mão na massa”. Além disso, usamos ferramentas integradoras e técnicas de facilitação de grupos que encurtam o distanciamento entre líderes e liderados, órgão central e demais órgãos e acolhem diferenças e especificidades, gerando sensação de pertencimento aos participantes.

Sabemos que inovação não é mais uma escolha e todos os servidores podem (devem) inovar . Porém, temos o desafio de estourar a “bolha da inovação” e alcançar pessoas que acham que inovar não é para elas. Ao falar de inovação com jargões como “mindset disruptivo”, mostrando casos de sucesso internacionais e do setor privado, não conseguimos nos conectar com a realidade dos outros. Por isso, as áreas de gestão de pessoas precisam se comunicar com os servidores usando linguagem simples , com exemplos do dia a dia, mostrando, também, os casos de fracasso, para examiná-los e aprender com eles. A cultura se transforma pelas práticas, adaptadas às necessidades e contextualizadas. Assim, conseguimos desmistificar a inovação, mostrar que não é coisa de “gente jovem, descolada” ou que diz respeito somente a quem trabalha com tecnologia, e conseguimos tocar o coração das pessoas. Muitas das resistências são quebradas quando se tem acolhimento às diversidades, inclusive de ideias e perfis.

Em pesquisa com servidores, entendemos que existe uma percepção de que esses trabalhadores são resistentes à mudança, não querem aprender, nem inovar. Na realidade, muitas vezes estamos tão imergidos em pendências e urgências que não conseguimos olhar para as tendências. Outras vezes, não temos autonomia e somos microgerenciados, o que impede nossa liberdade criativa. As organizações foram envolvidas por um mantra “faça mais com menos” e a imposição de prazos e expectativas irreais podem tolher nossa inspiração e nosso pensamento sistêmico (vejam o livro “O efeito do propósito”, de Dan Pontefract).

Mesmo quando desejamos a mudança, ficamos paralisados frente a desafios tão complexos, a rapidez das transformações e a quantidade de informação (que não é o mesmo que conhecimento). Essa é a receita para o desengajamento e para perder oportunidades de inovação. Nesse contexto, muitos cursos e capacitações têm focado em instrumentalizar servidores com ferramentas, evidências e técnicas para inovar. Porém, como aplicar essas novas competências e instrumentos quando o ambiente é rígido, desestimulante e ameaçador?

A partir dos feedbacks dos servidores, compreendi que não faltam competências no setor público e não falta interesse dos servidores em aprender e transformar. Não queremos imitar robôs no trabalho. Porém, faltam ambientes de segurança psicológica para pessoas e ideias se conectarem e para que os servidores coloquem suas competências sociocomportamentais em prática. Esses ambientes inovadores, promotores de nossa natureza e habilidades humanas, não são comuns na administração pública. Nessa perspectiva, o engajamento não emana do controle e sim da confiança criativa , que é o elemento que azeita e dá liga às ideias, pessoas e emoções.

Assim, o que precisamos não é apenas instruir, é mudar modelos comportamentais. Para isso, abandonamos a visão romantizada de que todos precisamos ser motivados e felizes o tempo todo no trabalho. Ao removermos esses discursos evasivos sobre propósito e motivação, conseguimos focar no que realmente importa. Por exemplo, encorajamos líderes a criar ambientes propícios ao questionamento propositivo (que é diferente da reclamação acomodada). Muitas vezes, locais de trabalho harmônicos , em que não há divergências, na verdade, camuflam tensões não gerenciadas e ambientes opressores, em que os líderes apenas querem ouvir o eco de suas próprias vozes.

Uma questão equivocada no trabalho é a diferenciação entre vida pessoal e vida profissional. A vida é uma só! Isso significa que, se deixarmos nossos sentimentos fora, nunca conseguiremos nos conectar emocionalmente com o que fazemos. Precisamos remover a máscara de trabalhar e sermos quem somos de verdade se quisermos encontrar sentido no trabalho. Mostrar vulnerabilidades, apesar de não ser confortável, cria empatia com as pessoas, faz parte do aprendizado e é um ato de coragem (vejam o livro de Brenè Brown, “A coragem de ser imperfeito”).

Construir relacionamentos no trabalho também é um aspecto que ficou ainda mais relevante frente às incertezas e mudanças drásticas do mundo em que vivemos. Atividades e dinâmicas colaborativas, com momentos de escuta, sem julgamentos e focados em sentimentos devem ser enxergados como trabalho, já que impactam na criação de confiança do time. Porém, eles precisam ser pertinentes ao propósito das reuniões ou dos projetos e devem considerar os diferentes perfis e perspectivas dos participantes.

Outra iniciativa inovadora é como trabalhamos a comunicação empática com storytelling de dados. Essa necessidade surgiu a partir do relato de diversos servidores sobre a dificuldade em engajar as lideranças em projetos. Muitas ótimas ideias não são experimentadas e desenvolvidas simplesmente por não serem bem apresentadas. Outro motivo é que, apesar de realizarmos muitas entregas à sociedade, os cidadãos ainda têm uma percepção de que servidores são acomodados ou trabalham pouco. Criamos, então, técnicas e modelos para apoiar servidores a construir competência narrativa, mostrar seu trabalho usando dados e engajar a audiência, sejam líderes ou usuários dos serviços.

Também criamos um modelo que transformou a forma usual de mapear competências no governo: nessa metodologia, os servidores desenvolvem autoconhecimento ao mesmo tempo em que mapeiam suas competências para entender onde devem focar seus esforços de desenvolvimento pessoal e profissional e onde trabalham no “flow” (fluxo), ou seja, não só com mente e mãos, mas também com o coração. A solução é uma forma simples, de autosserviço e adaptável que, inclusive, aponta para outras oportunidades, como a otimização da alocação de pessoal.

Outra iniciativa, inclusive vencedora do 25º Concurso de Inovação da Enap (Escola Nacional de Administração Pública), em 2021, foi a criação de duas novas modalidades de trabalho no governo: o Free-LA! e o time volante . São formas simplificadas e desburocratizadas, que ampliam as possibilidades de trabalho para os servidores. A ideia é considerar a tendência mundial da flexibilidade no trabalho, da atuação diversificada e sob demanda, em contraste ao formato rígido e circunscrito a áreas específicas de atuação, além de adequar a necessidade da administração pública ao interesse dos servidores e às competências disponíveis.

Nesse modelo, os servidores melhoram suas experiências no trabalho, constroem redes, disseminam os aprendizados em seus órgãos de origem e oxigenam ideias no serviço público. Esse ganho se reflete em maior engajamento, motivação e no aumento da produtividade. As avaliações dos participantes comprovam essa perspectiva: até hoje, 100% dos servidores que atuaram nessas modalidades afirmaram que participariam novamente de outras atividades e 100% consideraram a experiência como positiva. A iniciativa tem ganhado escala e inspirado diversos outros órgãos.

Não podemos mudar as pessoas, mas podemos desenhar experiências que incentivem comportamentos desejáveis. Assim, muitas outras iniciativas estão em desenvolvimento, como criação denudges (ou intervenções comportamentais) que simplificam nossa vida no trabalho e melhoram o bem-estar. Experiência do Servidor e Experiência do Cidadão estão intrinsecamente ligadas e o objetivo final sempre é entregar valor à sociedade.

Hoje, me sinto reconectada com meu espírito público, com meu dever como servidora. Mas sei que não é porque faço mais ou melhor que outros servidores (as). Tive, certamente, mais oportunidades e mais sorte do que a maioria. Por isso mesmo, tenho a obrigação de alcançar outros servidores que não têm as mesmas oportunidades que eu tenho e apoiá-los a também se reconectarem e a transformarem realidades.

Luana Silveira de Faria é psicóloga, servidora pública federal e coordenadora-geral na Secretaria de Gestão e Desempenho de Pessoal do Ministério da Economia, onde fundou e lidera o LA-BORA! gov, Gestão Inovadora de Pessoas.

Este conteúdo é parte da cobertura especial “a serviço do público”, que tem o apoio da república.org, um instituto apartidário e não-corporativo, dedicado a melhorar a gestão de pessoas no serviço público, em todas as esferas de governo.

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