É evidente que o Brasil vive um momento de anormalidade democrática. Após uma das campanhas eleitorais mais acirradas da história do país, assistimos ao aumento da violência com motivações políticas e antidemocráticas. Não é normal que a atenção sobre a transição de poder após um processo eleitoral transparente e confiável, fiscalizado por instituições brasileiras e observadores internacionais, esteja ofuscada por atos equiparáveis a terrorismo e intimidação de pessoas que se expõem politicamente.
Não foi do nada que chegamos a esta situação. Ela é a culminação de anos de naturalização do extremismo, da demonização de adversários e da aceitação da violência como componente do debate público. É também resultado de sabotagens ao Estado de Direito por parte de autoridades que, impunemente, manipularam a legítima insatisfação popular com falhas no sistema político para se beneficiar da desmoralização do próprio sistema e de suas instituições.
Se é certo que não foi do nada que chegamos a esta situação, é ainda mais certo que superá-la exigirá esforços de todos. É um desafio que não se restringe a lideranças políticas, a partidos, ao Congresso e ao Judiciário. É de toda a sociedade. Como diretor do Instituto Galo da Manhã, organização filantrópica que tem entre suas prioridades o aprofundamento da democracia no Brasil, identifico caminhos para ampliar o engajamento de outros institutos e fundações nesta agenda.
Sabemos que o campo da filantropia é plural, atua em diversas temáticas e contempla diferentes perspectivas para soluções de problemas e para o papel do Estado. Mas, afora estas ou outras divergências, há um consenso de que para obter avanços duradouros em temas de interesse público é indispensável haver um ambiente democrático saudável, o que inclui governos transparentes, que reconheçam a legitimidade da oposição e de críticos, assegurem a liberdade de imprensa e a participação da sociedade civil.
É com esta perspectiva que o campo da filantropia, que é parte da sociedade civil, pode aprofundar sua atuação em defesa da democracia e do Estado de Direito: como uma agenda que não é descolada das demais, e sim o ponto de partida para todas as outras. Não há sociedade civil fortalecida sem democracia e não há democracia fortalecida sem sociedade civil independente. Não avançaremos de forma duradoura em causas relevantes como educação, sustentabilidade ou segurança pública sem respeitar essas premissas.
Antes mesmo de doar recursos, há uma contribuição simples que filantropos podem adotar com mais frequência: usar mais a sua voz. De acordo com a experiência internacional, quando lideranças setoriais se posicionam com transparência e assertividade sobre seu compromisso com a democracia e seu repúdio a atos antidemocráticos, não só estimulam o engajamento de pares como também ajudam a isolar vozes antidemocráticas.
Não há sociedade civil fortalecida sem democracia e não há democracia fortalecida sem sociedade civil independente. Não avançaremos de forma duradoura em causas relevantes como educação, sustentabilidade ou segurança pública sem respeitar essas premissas
O poder da comunicação também pode ser usado para expressar o que é esperado de líderes políticos e reconhecer publicamente aqueles que colaboram para conter investidas antidemocráticas. Quando a violência escala, essas pessoas que defendem a democracia, o diálogo e a tolerância costumam ser as primeiras a sofrer perseguição e isolamento pelos próprios pares, e podem precisar de apoio público.
Assim como as lideranças políticas, as organizações e lideranças sociais também são profundamente impactadas pelo avanço antidemocrático, seja porque a restrição dos espaços de participação torna o trabalho de formular e negociar soluções extenuante, seja porque elas frequentemente são alvo de perseguição, incluindo ataques reputacionais e agressões físicas.
Este cenário demanda mudanças na relação entre doadores e as pessoas e organizações apoiadas. Primeiro, para demonstrar ativamente que elas “não estão sozinhas” e terão apoio para lidar com ataques recebidos. Um apoio que pode incluir desde a oferta de serviços de bem-estar psicológico ao apoio técnico para questões jurídicas, de comunicação ou até de segurança física e digital, como reação a ofensas reputacionais, assédio judicial ou ameaças concretas à integridade física.
Além do gesto de cuidado, é preciso adotar uma postura mais flexível, com doações mais livres, que permitam adaptar-se a imprevistos ou até com mudanças de prazo do escopo de projetos. Isso porque governos sem apreço pela democracia adotam decisões imprevisíveis, sem amplo debate e não raras vezes utilizam métodos de desinformação para dificultar o trabalho de quem acompanha e formula políticas públicas. Isso exige das organizações esforços adicionais para analisar as medidas adotadas e trabalhar para conter retrocessos.
Por fim, mas não menos importante, o previsível: institutos e fundações filantrópicos podem incorporar a defesa da democracia às suas estratégias de investimento de diferentes formas. Podem apoiar iniciativas voltadas a aumentar a confiança nas instituições democráticas com mais transparência e inovação em políticas públicas, ou fomentar projetos que visem reconstruir o tecido social ampliando a cultura democrática e a capacidade de diálogo e convivência cidadã na pluralidade.
Considerando o que vivemos nos últimos anos e observando as experiências de outros países, não há esforço mais necessário do que descontaminar o ambiente democrático e “desradicalizar” a política, reposicionando o debate público em marcadores democráticos. Reduzir o extremismo que leva à violência requer atacar os principais fatores de risco à democracia: a polarização sectária, o descrédito no sistema político e nas instituições, e a desinformação que alimenta conspirações e uma retórica violenta, amplificada pela postura vacilante das plataformas de mídias sociais.
Nos últimos anos já vimos esforços neste sentido que contribuíram significativamente para conter a erosão democrática. Agora é possível dar um passo adiante e consolidar a sociedade civil e a filantropia brasileiras como referência global para resistir a retrocessos civilizatórios e a investidas autoritárias. É uma oportunidade valiosa para a filantropia assumir sua relação com a democracia.
Rafael Poço é diretor-executivo do Instituto Galo da Manhã e idealizador do Despolarize. Cofundador do Instituto Update, apresentou o programa “Política: Modo de Usar” (GloboNews). É advogado.