Por uma sociedade civil organizada e articulada com a cena internacional

Ensaio

Por uma sociedade civil organizada e articulada com a cena internacional
Foto: Maria Magdalena Arréllaga /WBO

Paulo Abrão e James N. Green


14 de julho de 2023

A circulação de informações do sul global para o norte global, da sociedade civil organizada para os governos do mundo todo, precisa ser ininterrupta, fluída e constante

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Nas eleições de 2022, diversos países estrangeiros se manifestaram em defesa da confiabilidade das urnas eletrônicas e do sistema eleitoral brasileiro como um todo. Essa solidariedade internacional foi importante para reforçar a atuação de quem, dentro do Brasil, trabalhava e segue trabalhando em defesa da democracia: o Supremo Tribunal Federal, o Tribunal Superior Eleitoral, a imprensa, a academia e principalmente os movimentos sociais, as organizações sindicais e as organizações não governamentais que compõem o núcleo duro, ativo e incansável da sociedade civil organizada.

A ideia de uma sociedade civil organizada e conectada internacionalmente não é uma ideia abstrata. Ao contrário, trata-se de uma mobilização concreta, que foi posta à prova em 2022, quando representantes de 19 organizações brasileiras desembarcaram em Washington para informar em primeira mão as autoridades americanas e os representantes de organizações da sociedade civil local e da imprensa sobre os ataques à democracia que vinham ocorrendo naquele ano no Brasil.

Três meses antes da eleição, representantes de organizações dos movimentos negro, indígena, LGBTQIA+ e outros – todos envolvidos na luta pelos direitos humanos no Brasil – estiveram com representantes do Departamento de Estado americano, do Congresso dos EUA e de organizações sociais e sindicais locais para fazer um pedido simples: que todos esses atores soubessem da confiabilidade do sistema eleitoral brasileiro e dos ataques injustos que a democracia vinha sofrendo no Brasil. Ao Congresso e ao governo americano, foi feito um pedido muito simples: que reconhecessem o vencedor da disputa tão logo o resultado fosse anunciado pela Justiça Eleitoral. Fosse quem fosse o vencedor.

Esse esforço não foi feito apenas nos EUA, onde o WBO (Washington Brazil Office) coordenou as ações, mas também na Europa, onde organizações parceiras lideraram os esforços para levar alerta semelhante e para colher de volta a mesma solidariedade em relação à defesa da democracia no Brasil.

De que adianta uma defesa internacional da democracia brasileira em 2022 se, de 2023 em diante, o Brasil não consegue conter e reverter uma devastação ambiental acelerada que põe em risco toda a humanidade?

Essa experiência diz muito sobre o futuro da democracia que queremos. A reconstrução dessa democracia, após os quatro anos de assédio do governo Bolsonaro, deve se dar com base nessa premissa, de que a sociedade civil organizada é fundamental e de que a ação dessa sociedade civil em defesa da democracia deve estar conectada internacionalmente.

Essa conexão internacional não é apenas entre as organizações da sociedade civil brasileira e governos estrangeiros que possam engrossar o coro em defesa de nosso sistema eleitoral e de nossa democracia. Ela é uma conexão também entre as próprias organizações da sociedade civil, por que as lutas, por exemplo, dos movimentos negros do Brasil e dos EUA, estão conectadas. Não há democracia verdadeira sem a participação de todos e, portanto, sem a correção das injustiças históricas que ainda hoje alijam milhares de negros da plena cidadania. É por isso que, depois de ter participado da comitiva que esteve em Washington em julho de 2022, organizações dos movimentos negros brasileiros mandaram uma carta aos presidentes dos EUA, Joe Biden, e do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, pedindo que ambos retomassem o trabalho bilateral do Japer, sigla em inglês para Ação Conjunta Brasil-EUA para a Eliminação da Discriminação Étnico-Racial e a Promoção da Igualdade.

O mesmo ocorre na questão ambiental. De que adianta uma defesa internacional da democracia brasileira em 2022 se, de 2023 em diante, o Brasil não consegue conter e reverter uma devastação ambiental acelerada que põe em risco toda a humanidade? É preciso ampliar e aprofundar a cooperação internacional em defesa do meio ambiente e dos povos indígenas. A democracia já não pode mais ser entendida apenas como a garantia do respeito ao resultado de eleições; ela deve vir acompanhada pela garantia de participação efetiva de todos os grupos historicamente subrepresentados e de formulação de políticas que preservem o meio ambiente e defenda os povos indígenas.

Por isso, o WBO fez, em fevereiro de 2023, uma articulação entre movimentos indígenas brasileiros e parlamentares americanos, que expressaram sua preocupação com a morte de mais de 600 crianças indígenas yanomami em Roraima, no início do ano. Essa articulação foi basicamente fornecer informações de qualidade, confiáveis e em primeira mão, produzidas pelos próprios indígenas, a respeito da situação que eles estavam vivendo. E a carta dos parlamentares americanos foi um sinal de que muitas das questões atuais, incluindo a questão ambiental, transcendem fronteiras.

A circulação de informações do sul global para o norte global, da sociedade civil organizada para os governos do mundo todo, é uma circulação ininterrupta, fluída, constante. Ela não deve estar restrita aos períodos de crises agudas, como foi o momento do ataque do bolsonarismo ao sistema eleitoral brasileiro. A democracia que queremos pressupõe um fluxo organizado e constante, um contato estreito entre as organizações e com os governos e sociedades verdadeiramente engajadas em coordenar a defesa da democracia, do meio ambiente e dos direitos dos povos tradicionalmente subrepresentados.

Paulo Abrão é doutor em direito, foi secretário-executivo da CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), secretário nacional de Justiça e presidente da Comissão de Anistia no Brasil, além de secretário-executivo do Instituto de Políticas Públicas de Direitos Humanos do Mercosul.

James N. Green é professor de História e Cultura Brasileira na Brown University, além de autor de 11 livros sobre o Brasil. É também co-coordenador nacional da Rede dos EUA para a Democracia no Brasil e ex-presidente da Brazilian Studies Association.

A Democracia que Queremos é uma série de ensaios onde especialistas de diferentes áreas e de organizações que integram a coalizão Pacto pela Democracia apresentam reflexões e debatem os caminhos para a construção de uma sociedade mais democrática.

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