A chamada “justiça de transição” é constituída por um pacote de ações e reflexões que deve ser acionado quando dada sociedade necessita romper com um contexto autoritário e se preparar para a retomada democrática. Revisitar criticamente o passado, elucidar os crimes cometidos por agentes públicos, criar espaços de memória, responsabilizar os perpetradores daquelas violências e reparar as vítimas são algumas das tarefas que esse arcabouço sugere para que possamos seguir em frente livres da impunidade e do esquecimento. Vizinhos sul-americanos como Argentina, Chile e Uruguai encaminharam, em diferentes níveis, políticas de memória, verdade, justiça e reparação. O reflexo desses esforços é notório: nesses países, há um intenso sentimento de repulsa à ditadura e, por conseguinte, de valorização da ordem democrática.
No Brasil este é um processo ainda em construção. Não é possível superar uma ditadura e voltar à democracia sem sequelas – e o nosso país está repleto delas. O fato de não ter sido possível, em razão das amarras do passado, cumprir à risca o exercício proposto pela cartilha da justiça de transição, nos relega a um ciclo extremamente perigoso de constantes violações dos direitos humanos. Vivemos uma democracia fragilizada e à sombra do fantasma da volta da ditadura.
O que parecia improvável de acontecer, há algum tempo soa como uma infeliz possibilidade. Posicionamentos elogiosos ao regime ditatorial ganharam força (e visibilidade) na última década. As fatídicas manifestações que despontaram a partir de junho de 2013 rapidamente absorveram também reivindicações de caráter apologético à ditadura.
Havia uma figura, contudo, que há tempos já se mostrava entusiasta do regime truculento que entre 1964 e 1985 deixou 434 mortos e desaparecidos, além de milhares de pessoas perseguidas politicamente, segundo as apurações da CNV (Comissão Nacional da Verdade): o ex-presidente Jair Bolsonaro. Antes mesmo de chegar ao Planalto, quando era um parlamentar pouquíssimo profícuo, expressou diversas falas de enaltecimento dos crimes praticados, principalmente, por militares na ditadura, tendo sido um dos raros votos contrários à existência da CNV quando o dispositivo passou por votação na Câmara dos Deputados, em 2011.
Já na Presidência da República, a partir de 2019, Bolsonaro promoveu um verdadeiro desmonte nas escassas políticas relacionadas ao tema que haviam sido implementadas desde a redemocratização do país. A exemplo disso, a CEMDP (Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos), instalada por Fernando Henrique Cardoso em 1995 para organizar as buscas e o reconhecimento dos corpos dos ainda desaparecidos da ditadura, foi aparelhada por aliados do então presidente, teve seu expediente intencionalmente dificultado e foi extinta no apagar das luzes do desgoverno em dezembro de 2022. No Dia Internacional de Combate à Tortura deste ano, em 26 de junho, familiares divulgaram manifesto que cobra a reativação imediata da CEMDP.
Outro colegiado importante, a Comissão da Anistia, criada por Lula em 2002 para administrar a reparação às vítimas, também sofreu inúmeras interferências. Além de também ter sido preenchida por bolsonaristas (e militares) claramente nada comprometidos com a agenda, a Comissão indeferiu mais de 4 mil pedidos de anistia ao longo dos últimos quatro anos.
A já mencionada CNV, ainda que tardiamente instituída, foi responsável, entre 2012 e 2014, por reposicionar o tema da ditadura no debate público e investigar os crimes do período. Fez isto ouvindo os sobreviventes e familiares, identificando os algozes e analisando milhares de documentos históricos para, ao fim, reconstituir os inúmeros danos causados pelo regime, os quais atingiram toda a sociedade brasileira. O vasto trabalho realizado pelo órgão pode ser acessado em seu relatório final, que traz um conjunto de recomendações que visam a não-repetição de um regime daquela natureza e o fortalecimento do Estado democrático de direito. Em abril deste ano, o Instituto Vladimir Herzog lançou relatório inédito de monitoramento dessas recomendações. No estudo, apontamos que mais de 70% dessas sugestões não foram acatadas pelo poder público, principal responsável por fazer valer o legado da CNV. O governo Bolsonaro, evidentemente, agiu com descaso diante dos acúmulos da CNV.
Esses são movimentos que afetam diretamente a atuação política de sobreviventes e familiares de vítimas da ditadura militar, cuja atividade se iniciou antes mesmo do encerramento formal do regime e se desdobra até os dias de hoje. Mobilizados em coletivos e instituições espalhadas ao redor de todo o país, esses militantes lidam há décadas com traumas acarretados pelas violências da ditadura e ameaças incessantes contra a luta por eles liderada. Trata-se de um campo de disputas seriamente atingido pela ausência de uma política de Estado de direitos humanos, até mesmo em cenários tidos como mais promissores à efetivação das exigências históricas do grupo.
Com a eleição de Lula, a expectativa tem sido pela reversão do descalabro conduzido por Bolsonaro e que possamos avançar radicalmente na direção da suplantação completa das heranças da ditadura militar
Essa parece ser a conjuntura atual. Vários acenos positivos à sedimentação e à valorização dessas políticas foram feitos logo após a posse do presidente Lula, por ele e algumas das personalidades escolhidas para compor o governo, como o ministro Silvio Almeida. A partir da eleição de Lula, a expectativa tem sido pela reversão do descalabro conduzido por Bolsonaro. Igualmente se espera que possamos avançar radicalmente na direção da suplantação completa das heranças da ditadura militar.
Nesse sentido, esperamos o robustecimento da Comissão de Anistia, sobretudo orientado por um olhar generoso para seu orçamento anual, que hoje não é suficiente para lidar com os mais de 80 mil requerimentos que aguardam a avaliação dos conselheiros. Da mesma forma, a CEMDP precisa ser urgentemente retomada para dar continuidade às buscas de ao menos 160 corpos que há décadas permanecem desaparecidos. O órgão de acompanhamento e efetivação das recomendações da CNV, cuja criação foi proposta pela comissão, deve ser criado e mantido permanentemente, para que seu expediente funcione independente de quem ocupe a presidência da República ou o Ministério dos Direitos Humanos. A propósito, todas as políticas em torno de memória, verdade, justiça e reparação que já foram desenvolvidas devem existir enquanto política de Estado, e não de governo. Além de outras iniciativas a serem criadas e também fortalecidas.
Sabemos que o tema é parte de uma agenda complexa, que instiga a ira de diferentes grupos conservadores e da direita, em especial das Forças Armadas. Todavia, esta nos parece uma oportunidade singular de reconduzir os militares às suas atribuições originais e relevantes de proteção das nossas fronteiras, salvaguarda da soberania nacional e suporte à política externa, por exemplo. A primeira recomendação da CNV, inclusive, indica a premência do “reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar”. Ainda esperamos por essas declarações.
A democracia que queremos – e necessitamos – perpassa pelo compromisso com as milhões de vítimas da ditadura militar. Falamos em milhões porque nenhum brasileiro passou incólume ao regime, talvez apenas com exceção dos perpetradores. Do mesmo modo, quando se formula políticas nessas temáticas todos nós somos beneficiados. Especialmente porque tortura, desaparecimento forçado e perseguição política ainda são crimes largamente praticados por agentes públicos no Brasil. A democracia plena soa como uma miragem distante quando não consideramos o direito à memória, à verdade, à justiça e à reparação para todas e todos.
Gabrielle Abreu é historiadora formada pela UFRJ e mestre em História Comparada pela mesma universidade. É Coordenadora de Memória, Verdade e Justiça do Instituto Vladimir Herzog e integra a Coordenação Nacional do Movimento Mulheres Negras Decidem.
A Democracia que Queremos é uma série de ensaios onde especialistas de diferentes áreas e de organizações que integram a coalizão Pacto pela Democracia apresentam reflexões e debatem os caminhos para a construção de uma sociedade mais democrática.