Dentre os inúmeros requisitos para uma democracia viva, pujante, inclusiva e justa com todos os cidadãos, há uma premissa que também tem estado sob constante ataque: o meio ambiente. Não há democracia sem meio ambiente, porque é dele que dependemos para nos alimentarmos, para termos água potável, para o fornecimento de energia e para a segurança climática. Não há igualdade de direitos se alguns lucram em detrimento do bem-estar de todos.
Uma breve análise de alguns ataques ao meio ambiente mostra sua relação direta com os ataques à democracia e as tentativas de fragilizá-la. Podemos começar citando a grilagem de terras públicas – ou seja, terras da União e, portanto, de todos nós, brasileiros – na Amazônia. Esse roubo das nossas terras é seguido por um processo brutal de desmatamento, depois por queimada, para limpeza do solo destinada a atividades agropecuárias extensivas e de baixa produtividade. A madeira nobre extraída é invariavelmente contrabandeada, privando o Estado de impostos. Para a população como um todo, fica o ônus na forma de poluição, de mais gases de efeito estufa na atmosfera, de menor regularidade climática e o fortalecimento do crime organizado, com suas nefastas consequências sobre a segurança pública da região e do país.
A privatização da Amazônia tem deixado sequelas preocupantes. De acordo com o Relatório Amazônia Viva 2022 , elaborado pelo WWF, 18% das florestas amazônicas foram completamente perdidas e 17% estão degradadas. A perda de cobertura florestal continua a crescer e a deterioração do bioma a coloca cada vez mais perto do ponto a partir do qual o ecossistema entraria em um processo irreversível de degradação, ao longo do tempo deixando de ser uma floresta tropical para se tornar uma floresta mais seca e mais suscetível a queimadas. Esse processo comprometeria os meios de subsistência de cerca de 47 milhões de pessoas que vivem na Amazônia, incluindo 511 grupos de povos indígenas e 10% da biodiversidade do planeta, exacerbando as crises climáticas e naturais globais.
O peso da Amazônia na regulação do regime pluviométrico da América do Sul sugere que sua deterioração coloca em risco a segurança alimentar do Brasil e de outros países. T ambém impossibilita a manutenção do aumento da temperatura do planeta abaixo de 1,5°C (meta estabelecida no Acordo de Paris), uma vez que essa floresta armazena entre 367 e 733 gigatoneladas de CO2 em sua vegetação e em seus solos. As metas globais de biodiversidade também ficariam fora de alcance.
Ou seja, o lucro imediato de uns pode comprometer o bem-estar de todos, em uma das mais claras afrontas ao mais básico princípio da democracia: a igualdade de direitos.
Todos os dados mostram que os processos acima se intensificaram entre os anos de 2016 e 2022, notadamente durante o governo Bolsonaro. Não por acaso, esse também foi o período em que a democracia brasileira enfrentou sérios desafios. O desmonte das políticas ambientais promovido pelo último governo foi também uma fragilização dos direitos das populações locais.
A ausência intencional do Estado abriu espaço para o crime, gerando inúmeras crises humanitárias. A do povo Yanomami é, sem dúvida, a mais crítica. Mas a crise alimentar que se instalou na Amazônia, com a contaminação por mercúrio da principal fonte de proteína da população local, não pode ser subestimada. A elevação dos problemas de saúde causados pela fumaça das queimadas – algo impensável para um bioma úmido como a Amazônia – com a consequente pressão sobre o sistema de saúde pública, precisa ser lembrada. A expulsão de pequenos proprietários do Cerrado, onde são ameaçados e coagidos, não pode ser ignorada.
O lucro imediato de uns pode comprometer o bem-estar de todos, em uma das mais claras afrontas ao mais básico princípio da democracia: a igualdade de direitos
Em todos esses casos, direitos humanos fundamentais, assegurados pela Constituição brasileira, foram desrespeitados ou suprimidos. As desigualdades sociais foram ampliadas em âmbito nacional pela maior inflação de itens básicos de alimentação registrada no período, como consequência das secas mais severas que prejudicam as lavouras e acabam encarecendo os alimentos na gôndola – secas estas que decorrem, em parte, do desmatamento da Amazônia, de onde provêm os rios voadores que irrigam o centro-sul do Brasil.
Por isso, não é de se estranhar que a defesa e o reforço da democracia que estamos vendo nos últimos meses, na forma de investigação e punição dos responsáveis por ataques a ela, inclua também a restauração de políticas ambientais sólidas e efetivas. Um bom exemplo é a quinta fase do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento da Amazônia Legal – PPCDAm 2023-2027. Além da visão de longo prazo, estendendo-se para além do atual mandato presidencial, vale destacar os vários pilares de sustentação do plano, que vai além do monitoramento e controle ambiental e inclui o ordenamento fundiário e territorial, instrumentos normativos e econômicos e o incentivo a atividades produtivas sustentáveis.
Destaco o PPCDam porque assim como a democracia, a meta de desmatamento zero também é inegociável. Por isso, é essencial destinar territórios, paisagens e bacias hidrográficas a formas de gerenciamento eficaz e sustentável. Para tanto, além da titularidade de territórios indígenas, o Brasil pode contar com o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), com diferentes categorias, que vão da preservação integral à exploração sustentável de recursos, permitindo uma destinação justa das terras públicas do bioma.
É igualmente urgente o combate ao garimpo ilegal e o uso de mercúrio, que está contaminando rios e peixes . Como essa é uma atividade transfronteiriça, a Cúpula da Amazônia, no começo de agosto, em Belém, surge como uma oportunidade para um olhar integrado e um compromisso regional pelo fim do garimpo ilegal e do uso e contaminação de mercúrio. A cúpula deverá gerar um documento a ser apresentado na Assembleia das Nações Unidas, em setembro, e compartilhado com países detentores de outras grandes florestas tropicais, como Congo e Indonésia, gerando um movimento diplomático que pode chegar à 28ª Conferência do Clima no final do ano, em Dubai.
Contar com a liderança dos governos dos países amazônicos, por meio de compromissos firmes e efetivos na Cúpula da Amazônia, é fundamental para mudar a trajetória atual da região. Somente mediante uma preservação ambiental efetiva, que inclua as pessoas e favoreça as atividades econômicas para as quais o bioma tem potencial e vocação, é que conseguiremos fortalecer a democracia em todos os níveis: local, regional e nacional.
Mauricio Voivodic é Diretor Executivo do WWF-Brasil desde 2017. Engenheiro florestal formado pela Universidade de São Paulo (USP) com mestrado em Ciências Ambientais, fez carreira profissional no Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), onde passou por diversos cargos e áreas de atuação. Foi membro do conselho diretor de duas organizações internacionais: ISEAL e Sustainable Agriculture Network (SAN), do Steering Committee do Tropical Forest Alliance 2020 e fellow do programa Climate Strategies Accelerator.
A Democracia que Queremos é uma série de ensaios onde especialistas de diferentes áreas e de organizações que integram a coalizão Pacto pela Democracia apresentam reflexões e debatem os caminhos para a construção de uma sociedade mais democrática.