O que acontece quando a liberdade de expressão se torna uma ferramenta de exclusão? Em 2025, sob a administração de Donald Trump, essa questão tornou-se uma realidade urgente. Censura acadêmica, repressão à mídia e a desregulação das plataformas digitais se tornaram estratégias para consolidar um novo paradigma de controle. Mas essa ofensiva não ocorre isoladamente. É parte de um movimento global que vem sendo arquitetado há décadas.
A ofensiva contra os direitos humanos e a diversidade não surge do nada. Como nos lembra Kimberlé Crenshaw, teórica do direito e criadora do conceito de interseccionalidade, tais ataques são processos cuidadosamente planejados para minar progressivamente direitos e espaços democráticos. Um exemplo emblemático desse fenômeno é a ordem executiva n.º 14.168, sob o título: “Defendendo as mulheres do extremismo da ideologia de gênero e restaurando a verdade biológica no governo federal”.
Assinada por Trump em 20 de janeiro de 2025, a medida impõe um reconhecimento estrito de apenas dois gêneros, masculino e feminino, e proíbe o uso de termos como “identidade de gênero” e “equidade” em documentos oficiais. Além disso, determina que agências federais removam políticas de diversidade e redefinam sua linguagem institucional, excluindo qualquer referência a questões LGBTQIA+ e a políticas de proteção de minorias.
Ao permitir que grupos mobilizados dominem a narrativa, as plataformas reforçam dinâmicas de polarização e desinformação
Essa instrumentalização da linguagem para restringir direitos e silenciar minorias não é uma tática nova. Sonia Corrêa, ativista feminista e pesquisadora brasileira, analisa como o conceito de “ideologia de gênero” vem sendo usado desde os anos 1990 por setores religiosos conservadores para atacar políticas de equidade de gênero e direitos LGBTQIA+. Hoje, essa expressão é central na retórica de governos autoritários que buscam restringir direitos e redefinir normas sociais sob uma roupagem de “ordem” e “tradição”.
O impacto dessas medidas se estende para além da esfera política, afetando diretamente a mídia e a academia. A repressão à informação tornou-se ainda mais evidente quando a Associated Press foi impedida de acessar um evento na Casa Branca por se recusar a adotar a nova nomenclatura imposta pelo governo para o Golfo do México, agora chamado de “Golfo da América”. Em poucos dias, mapas digitais e relatórios empresariais já refletiam essa alteração, demonstrando como a manipulação da linguagem pode servir ao domínio geopolítico, apagando histórias e reforçando uma narrativa imperialista.
No campo acadêmico, a situação é igualmente alarmante. Cortes de US$ 400 milhões na Universidade de Columbia e o veto a projetos de pesquisa no Brasil financiados por recursos americanos representam um ataque direto à produção de conhecimento crítico. A determinação do governo Trump para que a Fulbright exclua financiamentos a pesquisas que mencionem “direitos humanos”, “promoção de justiça social”, “gênero” e “crise ecológica” restringe significativamente a capacidade de pesquisadores abordarem questões fundamentais para a equidade e a justiça social.
Para além das medidas estatais, a desinformação e o apagamento de vozes dissidentes também são impulsionados por grandes plataformas tecnológicas, que alegam defender a liberdade de expressão enquanto removem mecanismos de transparência e controle. A pesquisadora Shoshana Zuboff, em seu estudo sobre o capitalismo de vigilância, explica como essas empresas não apenas extraem dados dos usuários, mas também moldam comportamentos e discursos. O desmonte da checagem de fatos pela Meta, substituída por um modelo comunitário de verificação, ilustra esse fenômeno: ao permitir que grupos mobilizados dominem a narrativa, as plataformas reforçam dinâmicas de polarização e desinformação.
O relatório “Aprenda a evitar ‘este tipo’ de mulher: estratégias discursivas e monetização da misoginia no YouTube”, do NetLab-UFRJ, revelou que canais misóginos na plataforma acumularam quase 4 bilhões de visualizações, transformando o ódio contra mulheres em um modelo de negócio lucrativo. Esses canais não apenas reforçam estereótipos prejudiciais, mas também naturalizam discursos que legitimam violência de gênero. Paralelamente, grupos organizados em aplicativos como Telegram coordenam ataques contra mulheres e LGBTQIA+ sem qualquer moderação ou responsabilização, criando um ecossistema de hostilidade digital que extrapola o ambiente virtual e alimenta a violência no mundo físico. A escala dessa propagação evidencia a necessidade urgente de regulamentação das plataformas digitais para conter a disseminação da misoginia e do discurso de ódio.
A ausência de regulação dessas plataformas digitais tem consequências reais, como demonstram os altos índices de violência contra populações vulneráveis. O “Dossiê Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2024” revela que, mesmo com uma leve queda de 16% nas mortes, o Brasil segue liderando os índices globais de assassinatos contra essa população pelo 16º ano consecutivo. A falta de moderação em aplicativos como o Telegram facilita a organização de ataques coordenados, tornando o ambiente digital uma extensão da violência no mundo físico.
Ainda, a decisão da Meta de renomear temas do Messenger, substituindo “Transgênero” por “Cotton Candy”, exemplifica como a exclusão não se dá apenas por meio da violência física, mas também por apagamentos simbólicos que deslegitimam identidades e minam a luta por direitos. Pequenas mudanças de design, quando alinhadas a uma lógica de marginalização, têm impactos profundos na visibilidade e no reconhecimento dessas comunidades.
Diante desse cenário, a regulação das plataformas digitais emerge como uma necessidade urgente para a preservação da democracia. Experiências internacionais mostram que é possível estabelecer regras sem comprometer a liberdade de expressão. O Digital Services Act da União Europeia e o Online Safety Act do Reino Unido são exemplos de como as regulamentações podem impor transparência e responsabilização às plataformas, garantindo um ambiente digital mais seguro.
Mais do que legislação, é necessário repensar os modelos de governança digital. Pesquisadores como Lawrence Lessig e Jonathan Barrett enfatizam o potencial de mecanismos deliberativos, como assembleias cidadãs, na formulação de políticas públicas inclusivas. Modelos como o Conselho Público de Inteligência Artificial, proposto pela pesquisadora Jude Browne, buscam democratizar a tomada de decisão sobre tecnologias algorítmicas, assegurando que os impactos sociais sejam considerados.
A regulação digital não é censura. É uma ferramenta essencial para equilibrar o poder entre grandes corporações e a sociedade. Cabe a nós pressionarmos por mudanças concretas, cobrando a aprovação do PL 2630/2020, conhecido como PL das Fake News, apoiando iniciativas independentes de checagem de fatos e fortalecendo redes de ativismo digital. A defesa da democracia passa pela proteção do debate público e pelo compromisso com um ambiente digital verdadeiramente inclusivo.
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Carine Roos é pesquisadora em inteligência artificial, gênero e direitos humanos, com mestrado em gênero pela London School of Economics. Fundadora e CEO da Newa, consultoria de impacto social, e autora da newsletter The Hidden Politics of AI, explora o impacto das big techs na governança digital e nos direitos fundamentais, com um olhar crítico sobre o Sul Global. Palestrante em eventos como Web Summit e Hacktown, combina expertise prática e acadêmica para destacar as interseções entre tecnologia, equidade e democracia.