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Lívia Reis
O desafio é entender o cristianismo como um segmento multifacetado, que acolhe populações vulneráveis ao mesmo tempo que busca restringir direitos
O aumento da parcela da população brasileira que se identifica como evangélica tem impactado diretamente o cenário eleitoral do país e faz da relação entre religião e política um tema inescapável de debate. A alguns dias do primeiro turno das eleições municipais, é possível perceber que as referências à religião têm aparecido de duas formas específicas nas atividades eleitorais. A primeira, mais comum, é a invocação a Deus nos materiais de campanha, nos debates e na propaganda eleitoral gratuita. A segunda, o aumento significativo de candidatos e candidatas que se identificam como cristãos, sem assumir vínculo com uma instituição religiosa específica. É nestes que devemos prestar atenção.
De acordo com um primeiro levantamento realizado pelo Iser (Instituto de Estudos da Religião), 12.689 candidatos usarão nome religioso nas urnas nas eleições municipais de 2020. Embora esse número indique um crescimento significativo de 24% em relação às eleições municipais anteriores, ele não reflete o total das candidaturas com identidade religiosa.
Para dar um exemplo, Alexandre Isquierdo, candidato oficial da Assembleia de Deus Vitória em Cristo no Rio de Janeiro e vereador há três legislaturas, não usa nenhum nome religioso na urna. Ao mesmo tempo, mobiliza todo aparato institucional em sua campanha, o que inclui divulgação da candidatura nas mídias e redes sociais de Silas Malafaia, líder da igreja, e participação em cultos, inclusive em outras denominações, por toda a capital fluminense.
Com isso, quero chamar atenção para o fato de que o nome religioso nas urnas é uma estratégia eleitoral sem qualquer garantia de efetividade, o que não diminui sua importância como fenômeno a ser analisado. Ao mesmo tempo, a ampla reivindicação de uma identidade cristã por parte das candidaturas pode nos oferecer mais pistas para a compreensão do momento político que atravessamos. Embora não seja inédito, tendo sido detectado também em 2016 e 2018, esse fenômeno ganha notoriedade em 2020 por aparecer de forma mais nuançada, refletindo a própria complexidade do campo religioso brasileiro. Tão católico quanto evangélico, o presidente Jair Messias Bolsonaro é um ótimo exemplo para se pensar os sentidos e a eficácia dessa estratégia. Mas, afinal, o que ela quer dizer?
Grosso modo, a afirmação dessa identidade religiosa mais difusa e polifônica confirma o recrudescimento das disputas em torno da representação do Brasil como uma nação cristã — terrivelmente cristã , na verdade — que deve ser pautada por determinados valores cristãos. Mobilizando discursivamente aquilo que Christina Vital chama de “retórica da perda”, esses atores políticos reivindicam a recuperação da ordem, da previsibilidade, da segurança e da unidade que existiam no Brasil e, em tese, foram destruídas por governos anteriores. Mais do que um mero recurso retórico, trata-se de um sentimento compartilhado entre pessoas que reconhecem como legítimos um conjunto de valores morais que precisam ser recuperados. Paralelamente, a imagem dessa unidade cristã, mais abrangente e robusta do que a evangélica, é mobilizada para implantação de uma agenda restritiva de direitos. As sucessivas intervenções no Plano Nacional de Direitos Humanos, capitaneadas por católicos e evangélicos, são um exemplo disso.
Os artigos publicados no nexo ensaio são de autoria de colaboradores eventuais do jornal e não representam as ideias ou opiniões do Nexo. O Nexo Ensaio é um espaço que tem como objetivo garantir a pluralidade do debate sobre temas relevantes para a agenda pública nacional e internacional. Para participar, entre em contato por meio de ensaio@nexojornal.com.br informando seu nome, telefone e email.
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