‘O celular se tornou uma fonte rica de controle da pandemia’
João Paulo Charleaux
26 de setembro de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h24)Biólogo Helder Nakagaya e matemático Pedro Peixoto falam ao ‘Nexo’ sobre as possibilidades e os riscos do uso dessa tecnologia na saúde
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Mulher usa o celular no metrô durante a pandemia de covid
Os modernos smartphones, conectados a redes de telefonia e internet, se transformaram em uma ferramenta valiosa nas estratégias sanitárias de monitoramento do espalhamento do vírus da covid-19 em todo o mundo durante a pandemia. Esse uso, no entanto, acende um alerta sobre o acesso de governos e empresas a dados pessoais.
A descrição dessas possibilidades e o temor pelo risco que elas podem representar são temas de pesquisa para o biólogo Helder Nakaya, vice-diretor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, e para o matemático Pedro Peixoto, professor associado do Departamento de Matemática Aplicada da USP. Ambos tratarão do assunto em conferência na segunda-feira (27), no ciclo sobre a covid-19 promovido pelo Consulado da França em São Paulo, em parceria com a Unesco, órgão das Nações Unidas para educação e cultura, e com os Blogs de Ciência da Unicamp. A transmissão é ao vivo e os vídeos ficam disponíveis nos canais do Consulado da França na internet.
Nesta entrevista, feita na quinta-feira (23) por escrito, Nakaya e Peixoto enumeram e explicam os usos do celular na pandemia e as razões para uma vigilância permanente em relação aos direitos individuais num setor sensível.
Pedro Peixoto A disseminação do vírus se dá pelo contato entre as pessoas. Portanto, entender o comportamento de contato entre as pessoas é uma forma de entender o possível padrão de espalhamento do vírus. Como atualmente a maioria das pessoas possui celulares com capacidade de geolocalização de alta precisão – via GPS e outros sensores –, o celular se tornou uma fonte rica de informações para entender esse contato entre pessoas. Durante a pandemia, esse tipo de informação foi usada em diversos países, de diferentes formas, para prever ou controlar o espalhamento do vírus.
Em alguns países, os dados de celulares foram usados para fazer o que ficou conhecido como “rastreamento de contato” (contact tracing). Nessa abordagem, ao identificarmos um indivíduo infectado, usamos o histórico de localizações deste e cruzamos com uma base de localização de outros indivíduos para detectar quem pode ter sido infectado. Daí isolamos toda a cadeia de pessoas potencialmente infectadas. Do que temos conhecimento, isso não foi implementado no Brasil de forma ampla e efetiva. Para evitar o problema de privacidade, alguns países criaram aplicativos de celular em que o usuário poderia baixar e registrar sua própria infecção ou não ao vírus.
No Brasil, dados de celulares foram principalmente usados no cálculo do que ficou conhecido como “índice de isolamento social”. Esse índice mede o percentual de pessoas que saíram de casa em um certo dia, em uma cidade, em relação ao total de pessoas monitoradas pelos dados de celular. Governos, como o do estado de São Paulo, fizeram parceria com as empresas de telefonia e obtiveram dados já processados com essa métrica . No caso da parceria do estado de São Paulo, os dados individuais de localização jamais saíram das empresas de telefonia e a privacidade foi totalmente preservada. Outra forma de calcular esse índice é usando dados de aplicativos de celulares/smartphones (aplicativos que pedem permissão ao usuário para usar geolocalização). Bases de dados de empresas que atuam no segmento de aplicativos de celulares foram usadas por municípios e estados, e também por pesquisadores, para monitorar a adesão às medidas de controle da pandemia. Novamente, as empresas providenciavam dados já processados, diretamente com o índice de isolamento calculado, portanto, dados individuais ficaram restritos às empresas.
Adicionalmente, dados de celulares com maior riqueza de detalhes foram disponibilizados no Brasil e em diversos outros países – por exemplo, nos EUA – para pesquisas científicas. Por exemplo, o Google fornece informações sobre os aumentos e reduções de fluxo de pessoas em mercados e farmácias . A Apple fornece informações sobre como as pessoas estão saindo de casa . Algumas universidades e centros de pesquisas estabeleceram parcerias com empresas para obtenção de dados individualizados, mas anonimizados por diversas camadas, usados para estudos visando entender com mais detalhes a dinâmica de espalhamento do vírus. Alguns exemplos podem ser vistos em estudos realizados na USP , onde dados individualizados, mas anonimizados, de viagens/percursos realizados foram usados para predizer ou ajudar na compreensão do espalhamento do vírus.
Helder Nakaya Existem aplicativos que monitoram dados vitais e sintomas, registram dietas e planejam exercícios, até os que viabilizam a telemedicina.
Há ainda aparelhos específicos para saúde – wearables, relógios, pulseiras, anéis – que também monitoram dados de saúde, glicemia e sono. Tanto a realidade aumentada quanto a realidade virtual estão sendo usadas em consultórios médicos, em salas cirúrgicas, em treinamento de profissionais de saúde e até para vacinar crianças.
Além, claro, de robôs que fazem micro-cirurgia, implantes que administram medicamentos e inteligência artificial para diagnosticar doenças, prever desfechos clínicos ou planejar tratamentos precisos e com menos efeitos adversos. Ou seja, o uso de GPS para mobilidade é apenas uma dentre as muitas tecnologias usadas em saúde.
Helder Nakaya O risco maior é que governos e empresas podem usar uma necessidade pontual – neste caso, uma epidemia – para incorporar uma prática invasiva permanente. Nós já abrimos mão a toda hora de nossa privacidade por conforto ou segurança. Quando aceitamos que um aplicativo tenha acesso a nossa localização para não termos que digitar o endereço de casa, não lemos as letras miúdas do aplicativo que diz tudo o que ele faz ou fará com estes dados.
Pedro Peixoto No Brasil, entidades governamentais ou agentes de decisões no controle da pandemia tiveram acesso apenas a dados anonimizados e agregados, sem qualquer risco de invasão de privacidade. Pelo que temos conhecimento, dados individualizados de celulares ficaram restritos aos seus donos, que são empresas de telefonia, de serviços para aplicativos, ou entidades que coletaram dados específicos. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais ajuda na preservação do sigilo do usuário, e as empresas estão cientes de sua importância e costumam respeitar o sigilo de dados pessoais. Em pesquisas onde dados individualizados foram usados, apenas dados já processados para um nível onde não seria mais possível identificar o indivíduo, ou agregados, foram disponibilizados pelas empresas, também preservando o sigilo individual.
De forma geral, no Brasil tivemos acesso a dados importantes para o monitoramento e o controle da pandemia, sem perda de privacidade. Em alguns outros países, observamos casos onde ou não havia dados disponíveis para auxiliar na pandemia, ou então os dados já violavam direitos básicos de privacidade.
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