Por que o impacto da variante delta é diferente no Brasil
Estêvão Bertoni
15 de setembro de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h29)Cepa mais contagiosa fez aumentar casos nos Estados Unidos e em países da Europa e da Ásia. Apesar de já ser predominante no território nacional, indicadores da pandemia estão em baixa
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Moradores de Ouro Branco (MG) recebem dose da vacina contra a covid-19 dentro de ônibus, em ação da Cruz Vermelha com o governo mineiro
Identificada pela primeira vez no final de 2020 na Índia, a variante delta do novo coronavírus já havia chegado em julho de 2021 a todos os países. Em pouco tempo, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), ela deveria se tornar “globalmente dominante” . Apenas o surgimento de uma mutação mais competitiva poderia impedir que a nova cepa continuasse a se espalhar, na avaliação da entidade.
A chegada da delta foi acompanhada pelo aumento nos casos de infecção em boa parte dos países da Europa, da Ásia e nos Estados Unidos, mesmo com a vacinação em estágio avançado nesses locais. No Brasil, embora os primeiros registros da variante tenham ocorrido há cerca de quatro meses, os dados continuam indicando um arrefecimento da pandemia, com menos casos, internações e mortes.
Neste texto, o Nexo mostra qual tem sido o potencial de estrago da cepa mais contagiosa do vírus e quais as explicações de especialistas para uma aparente mudança no seu comportamento no Brasil.
No final de julho de 2021, um documento interno do CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos) que acabou se tornando público mostrava que a variante delta do novo coronavírus era mais transmissível que a gripe comum, o ebola e a varíola. Sua capacidade de contágio se assemelhava à da catapora . Em meados de junho, ela respondia por 25,7% dos casos de covid-19 no país. Em setembro, 99,4% dos doentes tinham sido infectados pela nova cepa.
Além de mais transmissível, ela poderia causar quadros mais graves em pessoas que não se vacinaram, segundo o órgão. Pessoas vacinadas estão mais protegidas, mas continuam podendo transmitir o vírus, embora apresentem uma janela de transmissão mais curta.
Desde janeiro de 2021, com a posse do presidente Joe Biden, os Estados Unidos vinham reduzindo drasticamente o número de casos da doença com uma ampla campanha de vacinação. Em julho, os números voltaram a subir. A média móvel de novos casos saltou de 12 mil em junho para 60 mil em julho e 92 mil em agosto , graças à variante. Considerada duas vezes mais transmissível que as anteriores, ela teve efeito parecido em países da Europa e da Ásia.
Em São Paulo, o primeiro caso foi confirmado no começo de julho, quando outros 11 já haviam sido identificados no resto do país. Até o começo de setembro, sua circulação já ocorria em todos os estados brasileiros , segundo dados da Rede Genômica da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz). Apesar disso, os casos de covid-19 vêm caindo desde junho no país. Desde aquele mês, o número de mortes causadas pela infecção já havia caído 77% em relação a setembro .
Durante uma audiência pública no Congresso, no começo de setembro, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, reconheceu sua predominância no país, mas sem que isso resultasse num impacto sobre o sistema de saúde. “No mês de agosto, cerca de 70% a 73% das amostras são da variante delta”, disse. Segundo ele, apesar da presença da cepa, o Brasil tem um “ambiente epidemiológico mais tranquilo”.
“Nos últimos 60 dias, tivemos uma redução de aproximadamente 60% no número de casos e óbitos, e, nos últimos 15 dias, essa redução tem sido sustentada, mesmo com o advento da variante delta, que já tomou um caráter de propagação comunitária aqui também em nosso país. E a explicação para esse maior conforto, no cenário epidemiológico, é só uma: a nossa campanha de imunização”
Uma das explicações para o fato de a delta não ter causado no Brasil o mesmo estrago que causou nos Estados Unidos pode estar em outra variante que predominou no país: a gama, surgida também no final de 2020, mas no Amazonas.
A hipótese foi ventilada pelo próprio ministro da Saúde, durante a audiência no Congresso. “As pessoas que tiveram contato com a variante gama desenvolvem anticorpos que, de certa maneira, podem proteger contra a delta. Isso é apenas uma teoria que carece ainda de uma base científica sólida, mas pode ser uma explicação”, disse.
Para especialistas, a tese faz sentido. Em entrevista ao jornal Valor Econômico , na segunda-feira (13), o virologista Fernando Spilki, coordenador da rede Corona-ômica do Ministério da Ciência e Tecnologia, lembrou que o Brasil passou no começo de 2021 por um surto da variante gama de “proporções absolutamente titânicas”.
Dos quase 590 mil mortos pela covid-19 no Brasil desde o início da pandemia, cerca de 200 mil ocorreram apenas no período da pior onda causada pela gama, segundo o especialista.
“A falta de controle que tivemos em relação ao surto da gama entre fevereiro e abril no Brasil, o número de casos horrendo que tivemos, mais a vacinação, podem ter dado pelo menos por algum tempo a imunidade para que a gente conseguisse ter um convívio maior com a delta”
Para a doutora em genética e biologia molecular Maria Cátira Bortolini, que é professora titular do departamento de genética da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), a indução de uma resposta imunológica forte para toda a população por meio, principalmente, da vacinação pode estar revertendo uma vantagem que era do vírus, mas que agora pode estar passando para o hospedeiro, ou seja, os humanos.
Ela lembra que quando o Sars-Cov-2 (novo coronavírus) apareceu no final de 2019, na China, ele encontrou uma população “virgem” em relação a si próprio, mas não em relação aos coronavírus em si, que já circulavam entre humanos. “Existe uma resposta imunológica moldada ao longo da evolução, nessa ‘corrida armamentista’ entre os vírus e seus hospedeiros mamíferos, e não é diferente conosco”, afirmou em entrevista ao Nexo .
Ao longo da evolução, portanto, a resposta imunológica que se formou por conta do contato do homem com outros tipos de vírus já foi capaz de oferecer alguma proteção ao organismo contra o Sars-Cov-2. Por isso que a maior parte das pessoas não morrem de covid-19, segundo a professora.
Quando a delta apareceu, no meio da pandemia, ela encontrou grupos que já tinham se infectado por outras variantes e que se recuperaram, além de pessoas imunizadas pelas vacinas, o que impôs ainda mais obstáculos a ela, afirmou a pesquisadora. Isso ajudaria a explicar porque a cepa mais transmissível pode encontrar dificuldade.
Ela lembrou ainda que o novo coronavírus, que depende do hospedeiro para se reproduzir, é “extremamente eficiente” do ponto de vista evolutivo porque “mata pouco”. “Sua taxa de letalidade é baixa, em torno de 2,5% e 3%. Mas, como ele infecta muitas pessoas e pode causar casos graves, acaba morrendo muita gente ao mesmo tempo. Outra característica é que as pessoas ficam infectadas um bom tempo sem ter sintomas, então isso também faz dele um sucesso evolutivo”, disse.
Muitos dos países que sofreram impacto da variante delta não tiveram uma explosão de casos da gama, na avaliação do epidemiologista Guilherme Werneck, que é professor do Instituto de Medicina Social da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Nos Estados Unidos, por exemplo, o predomínio até então era da variante alfa.
“Aparentemente, a distância de maior transmissibilidade e, eventualmente, maior capacidade de escape do sistema imune é muito maior entre a delta e a alfa, e isso favorece que a delta, muito rapidamente, substitua aquela cepa e provoque um estrago. Já a distância entre a delta e a gama, nesse sentido de vantagem evolutiva, não é tão grande”, disse em entrevista ao Nexo .
Segundo ele, a ciência pouco estudou populacionalmente o papel da primeira onda de infecção na proteção contra o vírus, mas é plausível que pessoas que tenham tido uma primeira infecção, ao tomarem a primeira dose da vacina, tenham conquistado uma imunidade como se recebessem as duas doses.
21 milhões
de brasileiros se infectaram com o novo coronavírus desde o início da pandemia, segundo o Ministério da Saúde
“Como a nossa onda foi muito grave, certamente muita gente teve infecções assintomáticas e até mesmo essa infecção poderia servir como um primeiro estímulo à resposta imune, que não seria totalmente eficiente para proteger, mas esse nível de proteção poderia ser um pouco maior do que seria se fosse uma única dose”, disse.
Para Maria Cátira Bortolini, da UFRGS, outra possível explicação para o fato de os Estados Unidos terem sido mais impactados com a delta do que o Brasil está no fato de que lá existe uma resistência de vários grupos a se vacinar, o que não acontece por aqui.
“A chance de alguém não vacinado morrer de covid-19 é 11 vezes maior. Esse pico nos Estados Unidos está se configurando mais como um pico de não vacinados”, disse. Até terça-feira (14), os Estados Unidos tinham apenas 53,3% da população totalmente vacinada, e 9,2% com apenas uma dose, segundo dados do Our World in Data.
O país tem adotado uma série de medidas para combater a estagnação na campanha de imunização, como exigir vacinação obrigatória de funcionários federais e de quem pedir visto de residência e permanência no país. “A resistência no Brasil a gente não vê tanto. Aqui em Porto Alegre, 93% dos adultos já tomaram a primeira dose, e 63%, a segunda”, afirmou a professora.
O espaçamento maior entre uma dose e outra também parece, ocasionalmente, ter contribuído para barrar a gravidade da delta no Brasil, segundo o virologista Fernando Spilki, em entrevista ao jornal Valor Econômico. O intervalo para as vacinas da AstraZeneca e da Pfizer, até quarta-feira (15), era de três meses. O governo federal estudava encurtá-lo para acelerar a imunidade total da população.
“No Brasil, a vacinação foi tão espaçada ao longo do tempo que tem muita gente que está justamente agora imune [no pico da imunização] por ter tomado a segunda dose recentemente”, disse ao jornal.
65,29%
da população brasileira havia tomado ao menos uma dose da vacina até a quarta-feira (15), segundo dados do consórcio de veículos da imprensa
35,43%
estava totalmente imunizada até a mesma data
Guilherme Werneck, da Uerj, acrescenta que a maioria da população no Brasil está recentemente imunizada, o que é positivo tendo em vista que as vacinas podem perder algum grau de proteção com o tempo. “É um fenômeno interessante, mas dificílimo de estudar porque existem muitas coisas que acontecem ao mesmo tempo, e é difícil a gente avaliar exatamente até que ponto essa concomitância entre imunização completa mais recente — que foi meio ocasional — com o momento da introdução da delta realmente teria sido favorável”, afirmou.
Apesar de os números estarem em queda, os especialistas não descartam a possibilidade de uma nova onda causada pela delta. “Em nenhum país a delta deu essa folga. Ela pode até ter atrasado um pouco, mas acabou subindo. (…) Então, seria um ponto muito fora da curva se, no caso brasileiro, a gente não tivesse uma elevação da curva [de casos de contaminação].A verdade é que a gente não sabe quanto tempo esse período de imunidade dada por esses elementos vai nos dar uma certa paz”, disse Spilki, ao Valor.
Para ele, é possível que o problema apareça em algumas regiões do país, como no Rio de Janeiro, que já foi considerado pelo próprio prefeito da cidade, Eduardo Paes (PSD), como o epicentro da delta no Brasil. Esse cenário, disse, poderia ocorrer por volta de outubro, mas não teria a mesma magnitude da onda causada pela gama.
Werneck também disse concordar com a possibilidade de novas ondas. Ele defende que o otimismo criado pela queda momentânea nos indicadores da pandemia no Brasil seja associado a uma responsabilidade das pessoas com os cuidados para evitar infecções.
“Daqui até o final do ano, em vez de pensar em abrir, seria importante que tivesse justamente alguém dizendo que estamos indo bem, porque isso é importante do ponto de vista dos sentimentos das pessoas, é um alento, mas que reforçasse que precisamos usar a máscara, porque pode ser isso que vá fazer a diferença realmente e interromper qualquer possibilidade de retorno em altos níveis”, afirmou.
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