‘O movimento antivacina é também um efeito da hiperinformação’
João Paulo Charleaux
13 de outubro de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h27)Laurent-Henri Vignaud, historiador da ciência na Universidade de Bourgogne, fala ao ‘Nexo’ sobre as ideias, à direita e à esquerda, por trás do movimento antivacina nos últimos 300 anos
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Manifestante com máscara rasgada em marcha contra a imposição de um passaporte sanitário na Holanda
A resistência à vacinação é um fenômeno antigo e persistente, que encontra adeptos à esquerda e à direita – sempre nas franjas mais extremas desses setores –, e não está ligado à falta de educação, mas ao excesso de informação e à dificuldade de saber em que acreditar, de acordo com o historiador da ciência Laurent-Henri Vignaud, da Universidade de Bourgogne, na França.
O autor do livro “ Antivax: Resistência às vacinas, do século 18 aos Nossos Dias ” esmiuça, nesta entrevista concedida por escrito ao Nexo nesta quarta-feira (6), os argumentos dos que ainda resistem a se vacinar contra a covid-19 em todo mundo, e faz um retrospecto desse movimento antivacinal ao longo da história.
Vignaud fará uma conferência virtual sobre o tema no dia 14 de outubro, no ciclo de palestras sobre a Covid promovido pelo Consulado da França em São Paulo em parceria com a Unesco, órgão das Nações Unidas para educação e cultura, e com os Blogs de Ciência da Unicamp. A transmissão é ao vivo e os vídeos ficam disponíveis nos canais do Consulado da França na internet.
Laurent-Henri Vignaud Esses argumentos são muito diversos, assim como os perfis “antivax”. Muitos têm dúvidas simples sobre a qualidade das vacinas ou sobre os conflitos de interesse de quem as promove. Outros desenvolvem teorias extremas de conspiração, dizendo que as vacinas são feitas para adoecer, para esterilizar, matar ou escravizar. No meio, há aqueles que “hesitam” por tal ou tal motivo.
Aqueles que recusam explicitamente uma ou mais vacinas – quando falamos estritamente dos “antivax” – o fazem por motivos religiosos, políticos ou alternativos e naturalistas. Há certas correntes rigorosas, em todas as religiões, que recusam a vacinação em nome de um princípio fatalista e providencialista, numa afirmação da ideia de que o homem não é senhor de seu próprio destino.
Já os que se opõem às vacinas por razões políticas atacam as leis impositivas em nome da livre disposição de seus corpos e das liberdades individuais, no discurso do “meu corpo me pertence”.
Outros, muito numerosos hoje, contestam a eficácia das vacinas e defendem outras terapias que vão desde regimes de saúde a fitoterápicos e homeopatia – o que aparece em discursos como “a imunidade natural é superior à imunidade a vacinas” e “as doenças nos fortalecem”. A maioria desses argumentos está presente desde o início da polêmica vacinal no final do século 18, mas se atualizam de maneira diferente em cada época.
Laurent-Henri Vignaud Atualmente, as duas tendências existem: há uma postura “ecológica” antivacina que é bastante esquerdista e burguesa – um modelo muito difundido por exemplo na Califórnia entre funcionários de empresas digitais. E há uma postura “libertária” ou “confessional” antivacina, que é de direita, presente sobretudo na América, em círculos religiosos conservadores e partidários de líderes populistas como [o ex-presidente dos EUA Donald] Trump ou [o presidente do Brasil, Jair] Bolsonaro.
Manifestante exibe cartaz contra vacina em protesto na Avenida Paulista
Historicamente, a inoculação, técnica que antecedeu as vacinas no século 18, foi promovida por filósofos como Voltaire [iluminista francês, 1694-1778] e contrariada por homens da Igreja. Portanto, podemos classificar essa oposição como uma oposição à direita. No século 19, a dureza das medidas de vacinação obrigatória levou à revolta de setores mais pobres que não podiam escapar da injeção. O vacinismo aparece aí como higiene social e o antivacinismo, como algo protagonizado por movimentos operários, feministas e de defesa dos animais, mais marcadamente à esquerda, portanto.
A Revolta da Vacina , de 1904, no Brasil, foi desencadeada por uma campanha de vacinação forçada pretendida pela jovem República, que gerou motins na classe trabalhadora. No século 20, o antivacinismo está representado à direita e à esquerda, mas quase sempre nos extremos.
Laurent-Henri Vignaud Esse é um fenômeno recente. A França não está isenta da tradição antivacinal. Na verdade, essa era uma tradição até bastante virulenta na época de Pasteur [século 19], a ponto de atrasar o estabelecimento de uma obrigação de vacinar contra a varíola, mas esta não é uma opinião muito difundida até o início do anos 2000.
Por exemplo, nossa primeira liga “antivax” apareceu em 1954 após a entrada em vigor da obrigação do BCG, mas, à época, os ingleses e os americanos já tinha ligas “antivax” há quase um século.
Clientes exibem passe sanitário em seus celulares num café de Paris
Durante a última epidemia de varíola na Bretanha em 1954-1955, na altura em que o prefeito decretou o reforço da vacinação obrigatória, mais de 90% dos habitantes concernidos já tinham sido vacinados voluntariamente.
Essa confiança foi abalada durante o debate sobre a vacina contra a hepatite B em meados da década de 1990, até porque os políticos se contradiziam sobre sua possível periculosidade. E, na crise do do influenza A em 2009, a campanha de vacinação falhou. Os franceses não acreditavam na possibilidade de uma pandemia e não entendiam por que deveriam ter sido vacinados contra uma doença na qual não viam perigo. Talvez o choque da pandemia de covid reverta essa tendência.
Laurent-Henri Vignaud A suspeita de riscos tecnológicos – porque a vacina é um produto manufaturado – não se alimenta da falta de informação, mas de seu transbordamento. É por sermos inundados com informações e por não podermos lidar com um décimo delas que nós duvidamos.
Quem de nós pode explicar, ainda que de forma grosseira, como funciona algo tão difundido como um telefone celular? Diante dessa superabundância de quebra-cabeças técnico-científicos e de conhecimentos que não podemos assimilar, os cidadãos 2.0 fazem seu mercado e acreditam no que querem acreditar de acordo com o que consideram ser do seu interesse.
A maioria confia em palavras de autoridade e no pouco que conseguem entender de tudo o que chega a si. Alguns ficam insatisfeitos com as respostas que lhes são dadas e passam a duvidar de tudo, chegando a imaginar universos paralelos e paranóicos. Não é, portanto, na ignorância que estas crenças se baseiam, mas sim num “ônus da prova”, que pesa cada vez mais sobre os ombros dos cidadãos contemporâneos.
Nessa “sociedade de risco”, os cidadãos contemporâneos são cada vez mais instados a assumir a responsabilidade por si próprios e julgar por si próprios o que é verdadeiro e o que é falso. Em alguns, o espírito crítico se empolga e leva a uma forma de ceticismo radical da qual o antivacinismo é um bom exemplo.
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