Entrevista

‘Desinformação é estratégia para convencer evangélicos’

Isabela Cruz

03 de julho de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h42)

O ‘Nexo’ conversou com a editora-geral do Coletivo Bereia, especializado na checagem de notícias para religiosos, sobre o tipo de informação que chega a esse segmento, especialmente às portas das eleições

O Nexo depende de você para financiar seu trabalho e seguir produzindo um jornalismo de qualidade, no qual se pode confiar.Conheça nossos planos de assinatura.Junte-se ao Nexo! Seu apoio é fundamental.

FOTO: RICARDO MORAES/REUTERS – 02.JUL.2022

Pessoas no palco e na plateia estendem a mão em direção a Bolsonaro, orando por ele

Evento evangélico no Rio de Janeiro, com a participação do presidente Jair Bolsonaro (PL)

Dividido equilibradamente entre as candidaturas de Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com uma pequena vantagem para o atual presidente, o eleitorado evangélico é alvo de campanhas direcionadas de desinformação promovidas majoritariamente por grupos mais alinhados ao bolsonarismo. Essa é a constatação da jornalista Magali Cunha, editora-geral do Coletivo Bereia , a única organização do Brasil especializada em checagem de notícias para o público religioso.

Doutora em ciências da comunicação e pesquisadora do Iser, o Instituto de Estudos da Religião, Cunha afirmou ao Nexo que os maiores sites gospel do país reproduzem com frequência desinformação e têm seus conteúdos “repercutidos até mesmo por veículos oficiais das igrejas”.

Representantes de igrejas, associações evangélicas e o líder da bancada evangélica na Câmara, deputado Sóstenes Cavalcante (União Brasil-RJ), tampouco aderiram ao termo de cooperação proposto pelo TSE(Tribunal Superior Eleitoral) no início de junho em nome da “paz nas eleições”. Como mostrou o jornal Folha de S.Paulo, o combate a fake news era uma tema-chave do acordo.

Cunha questiona, no entanto, a lista dos que foram chamados pelo tribunal eleitoral a participar da iniciativa. Para ela, a escolha dos convidados foi “ideologizada” e insuficiente para representar toda a complexidade do mundo evangélico, que tem diferentes visões políticas entre suas várias denominações e associações.

Nesta entrevista, concedida ao Nexo na quinta-feira (30), Magali Cunha fala sobre as tendências da comunicação digital das redes evangélicas no período eleitoral, o trabalho do Bereia e as falhas do TSE para ter o apoio de lideranças desse segmento na defesa da democracia.

Como surgiu a ideia de criar um coletivo de checagem de notícias especializado no público cristão?

Magali Cunha Ainda em 2018, bem antes das eleições, o Nutes, que é um núcleo de educação em saúde da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], já percebia que circulava muita desinformação sobre saúde especialmente entre grupos religiosos e decidiu criar um grupo de pesquisa, a partir de um edital do próprio WhatsApp.

Dentro desse grupo da pesquisa, havia pelo menos quatro pesquisadores que trabalham especificamente com religião e comunicação, inclusive eu. Ao identificarmos que a circulação de fake news pelo WhatsApp em grupos evangélicos era alta, decidimos criar o Bereia em 2019.

Acompanhamos os espaços digitais religiosos, mídias sociais, sites de igrejas, sites gospel. Os evangélicos são o alvo primeiro do nosso trabalho, mas também abarcamos católicos, cristãos de modo geral e outras religiões.

Há especificidades no trabalho de comunicação quando o assunto envolve crenças ou lideranças religiosas?

Magali Cunha Existem, sim. Em primeiro lugar, porque existe a produção de conteúdo desinformativo especificamente para grupos religiosos, usando linguagem própria e tratando de conteúdos que realmente afetam as pessoas que são religiosas.

Nós aprendemos isso com o boom da desinformação que veio com o Brexit, em 2016, convencendo a população britânica a votar pela saída do Reino Unido da União Europeia. Ali, a Cambridge Analytics já trabalhava com segmentos da população, incluindo o religioso, criando conteúdos direcionados.

Em segundo lugar, para enfrentar essa desinformação, também precisamos usar a linguagem desse público. Por isso precisamos de pessoas que conheçam religiões, que conheçam essa linguagem. Montamos uma equipe nesse sentido.

Quais são os temas que predominam nas notícias falsas?

Magali Cunha O tema da saúde, que já é identificado lá na pesquisa da UFRJ, permanece. Claro que com a covid-19 houve uma potencialização enorme desse tema, mas ele já existia com a ideia, por exemplo, de cura milagrosa.

Em segundo lugar, a política, com os grupos que tentam interferir em temas de interesse público fazendo uso da religião. São temas voltados principalmente para a questão da sexualidade. Pânico moral, terror verbal em torno da sexualidade.

E também há notícias falsas em torno da perseguição aos cristãos. Antes era um tema que focava no exterior, com conteúdos sobre perseguição de muçulmanos, de budistas contra cristãos. Mas, durante o governo Bolsonaro, essa pauta passou a ganhar no Brasil contornos de disputa interna.

O próprio Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos foi à ONU [Organização das Nações Unidas] levar o tema da “liberdade religiosa”. Surgiu um termo chamado “cristofobia”, que entrou com força nas eleições municipais de 2020. Além disso, algumas lideranças religiosas midiáticas, do campo evangélico principalmente, dizem que as esquerdas no Brasil tentam calar essas lideranças religiosas para que não coloquem “pautas de salvação no Brasil”. Novos contornos vão surgindo.

E quem produz esses conteúdos?

Magali Cunha É uma mescla. No WhatsApp circula muito material com origem não identificada, anônimo. Sites gospel e perfis de personagens do mundo religioso nas mídias sociais muitas vezes repercutem esses conteúdos anônimos, dando força para isso. É o que fazem sites como o Gospel Prime , o Gospel+, o Pleno News, que são os veículos religiosos mais populares, com maior alcance de público, e ainda têm seus conteúdos repercutidos até mesmo por veículos oficiais das igrejas.

Ao mesmo tempo, temos os pronunciamentos que vêm de personagens do mundo político, da bancada religiosa no Congresso, de pastores, de artistas gospel que publicam nos seus espaços de mídias sociais conteúdo que é enganoso. Temos no site do Bereia uma seção que se chama Torre de Vigia, que é justamente voltada para o universo dos políticos, ministros de Estado, deputados, senadores.

Como um projeto apartidário, observamos que grupos relacionados com a direita religiosa, grupos conservadores, são os que mais produzem e circulam esse tipo de conteúdo. E isso aparece em pesquisas científicas também, de dentro e de fora do Brasil.

Aliás, nós buscamos, intencionalmente, acompanhar com mais atenção grupos de esquerda, grupos progressistas, na busca por desinformação. Alguns leitores nos cobram isso. Mas esses grupos [de esquerda] não tendem, de fato, a trabalhar com desinformação como estratégia de convencimento. Há uma ou outra coisa, mas não como estratégia.

Qual é o interesse do público religioso pelas checagens?

Magali Cunha Esse interesse vem crescendo. Nos surpreendeu muito, quando lançamos o projeto, o alcance e a receptividade que nós tivemos, tanto da parte de igrejas quanto do público em geral. Chamou atenção das pessoas que houvesse um projeto olhando para religião. Projetos de fact-checking nós temos vários, nos quais nós nos inspiramos, estudamos as metodologias todas. Mas, com essa natureza da religião, nós somos os únicos no Brasil e também na América Latina.

E o fato de não nos restringirmos à checagem de conteúdo torna o Bereia mais popular. Oferecemos cursos e palestras e assim somos convidados por diversos grupos. Temos, desde o ano passado, um projeto de enfrentamento de fake news com a Cese (Coordenadoria Ecumênica de Serviço), que funciona em Salvador. Eles organizam atividades na área de serviço social com igrejas de todo o Brasil, inclusive a Igreja Católica e igrejas do universo evangélico tradicional. Produzimos cartilha, cursos, palestras e cards que semanalmente mostram as fake news que mais circulam.

O que o Bereia espera para a campanha eleitoral?

Magali Cunha As eleições de 2020 já deram um terreno do que serão as eleições nacionais. Lá vimos a manutenção de conteúdo de pânico moral e terror verbal em torno de temas voltados para a sexualidade, algo que vinha das eleições de 2018. Também temas como defesa da família tradicional contra feminismo, contra o movimento LGBTI+, contra a ideia de “ideologia de gênero”, que é uma das grandes fake news criadas na última década. Esses temas vieram de 2018, se repetiram na eleição municipal e certamente se manterão.

Mas, diferente do que foi em 2018, quando tínhamos a questão da moralidade, tanto da corrupção quanto da sexualidade, com força, projetamos que agora a pauta econômica acabará tirando força da pauta moral. A maior parte da população evangélica está em classes mais empobrecidas da população, moradores de periferias.

Concorrendo com a pauta econômica, deverá vir o tema da perseguição aos cristãos. Já está aí com força, até em discussões recentes sobre casos de aborto. Agora, quando se discute o tema do aborto, já não se fala tanto da questão como sexualidade, mas sim de uma “tentativa de calar os cristãos” nesse debate.

Além desses temas, também já vemos circulando nas redes de vários atores políticos conteúdos que tentam mostrar o presidente Bolsonaro como um presidente de grandes feitos, que “foi salvo da facada para fazer grandes coisas pelo Brasil”. Essa desinformação sobre feitos inexistentes ou manipulados do governo, escondendo os defeitos, já tem aparecido bastante.

Como avalia a recusa de representantes de grandes igrejas evangélicas em assinar o acordo de cooperação do TSE?

Magali Cunha Estamos buscando compreender o critério de convite para a assinatura desse termo. Quando a Folha de S.Paulo obteve acesso a lista dos convites que foram feitos, vimos que é uma lista defasada. Temos lá várias igrejas pentecostais, lideranças, associações de religiões não cristãs. Mas não temos, por exemplo, grandes igrejas históricas como a Igreja Luterana, que tem duas versões no Brasil, a Evangélica de Confissão Luterana e a Luterana do Brasil. Não temos a Episcopal Anglicana, não temos a Metodista, conhecida no Brasil pela Educação, pelas escolas. E, mais sério, não temos o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs.

Então me parece que essa lista teve um caráter ideologizado. Foi um convite majoritariamente a grupos cristãos conservadores. Falta ali, por exemplo, a Cese, que é um guarda-chuva social das igrejas ecumênicas no Brasil, histórico, desde os anos 1970. É um grupo que, junto com o Conic [Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil], por exemplo, deveria ser considerado pela importância histórica e pela atuação no país.

Por exemplo, quem é [o empresário que foi cotado para ministro da Saúde do governo Jair Bolsonaro] Carlos Wizard no universo religioso no Brasil? Ele está na lista. Por outro lado, o pastor Antônio Carlos Costa, por exemplo, do Rio de Paz, afirma que assinaria o documento se fosse chamado, mas diz que, embora esteja na lista, não recebeu o convite.A iniciativa do TSE é muito louvável, mas tem algumas complicações que precisariam ser sanadas.

NEWSLETTER GRATUITA

Nexo | Hoje

Enviada à noite de segunda a sexta-feira com os fatos mais importantes do dia

Este site é protegido por reCAPTCHA e a Política de Privacidade e os Termos de Serviço Google se aplicam.

Gráficos

nos eixos

O melhor em dados e gráficos selecionados por nosso time de infografia para você

Este site é protegido por reCAPTCHA e a Política de Privacidade e os Termos de Serviço Google se aplicam.

Navegue por temas