Entrevista

‘O silêncio é uma forma de conivência com casos de abuso’

Ana Elisa Faria

12 de julho de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h36)

Ao ‘Nexo’, antropóloga Debora Diniz fala sobre as ‘cumplicidades perversas’ que toleram atos como o estupro cometido pelo médico Giovanni Quintella Bezerra contra uma mulher anestesiada em São João de Meriti

O Nexo depende de você para financiar seu trabalho e seguir produzindo um jornalismo de qualidade, no qual se pode confiar.Conheça nossos planos de assinatura.Junte-se ao Nexo! Seu apoio é fundamental.

Temas

Compartilhe

FOTO: REPRODUÇÃO/FACEBOOK

A imagem mostra o médico Giovanni Quintella Bezerra, preso em flagrante ao estuprar uma paciente na sala de parto, vestindo um jaleco e com um estetoscópio em volta do pescoço. Na foto, uma reprodução do Facebook do anestesista, ele sorri

O médico Giovanni Quintella Bezerra, preso em flagrante ao estuprar uma paciente na sala de parto

O abuso sexual cometido pelo médico Giovanni Quintella Bezerra contra uma mulher anestesiada para realizar uma cesariana em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, que veio à tona na segunda-feira (11), suscitou uma onda de revolta e perplexidade que ronda uma pergunta: por que o corpo das mulheres é tão vulnerável?

O crime foi revelado por funcionárias do Hospital da Mulher, que gravaram um vídeo de dez minutos que mostra o profissional violentando a paciente desacordada. Bezerra foi preso em flagrante e, desde então, outros relatos foram feitos por mulheres e familiares de possíveis vítimas. Até o momento, Bezerra é investigado por seis estupros , sob suspeita de ter praticado os atos de forma serial, sempre em um centro cirúrgico e com colegas trabalhando no mesmo ambiente. Ele não comentou as suspeitas publicamente.

Para a antropóloga Debora Diniz , professora da UnB (Universidade de Brasília) e pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, a persistência da violência existe como um regime de poder de controle normatizador dos corpos das mulheres. Na área médica, ela diz que os abusos ocorrem porque “os corpos das mulheres no campo da saúde são corpos permanentemente medicalizados, tocados e atravessados pelo poder médico”. Quebrar o silêncio é fundamental para coibir abusos.

Nesta entrevista ao Nexo , Diniz explica por que casos como esse podem demorar para vir à tona e quais atitudes devem ser tomadas pelo CFM (Conselho Federal de Medicina) e pela sociedade para evitar que crimes como esse ocorram.

Por que casos como esse demoram para vir a público?

Debora Diniz Eu prefiro evitar pensar que houve algo de ardiloso na maneira com que ele praticava a violência porque, na verdade, o ardil está em toda forma de violência sexual. Ela é operada de maneiras que a tornam difícil de ser descoberta. Então, se a gente vai para a forma estrutural pela qual o silêncio é composto, que não só toca na maneira como o médico violentava, mas havia rumores, a tal ponto que, a partir desses rumores, a equipe de enfermagem filmou, aqui há um ponto sobre a seriedade com que os rumores são tratados pelas instituições.

H á um pacto silencioso para se evitar escândalos, que acredita que algumas coisas se resolvam com conversa, que não leva a sério quando outras mulheres levantam uma suspeita. Em particular, em organizações lideradas por homens, existe a necessidade desses homens usarem a sua posição de poder para o enfrentamento dessas situações. Casos assim demoram para vir a público porque há cumplicidades perversas, que fazem com que os rumores não sejam levados a sério e investigados.

Na sua opinião, quais atitudes o Conselho Federal de Medicina deve tomar a partir de agora para que casos como esse não se repitam?

Debora DinizA mais importante delas, além de um processo de investigação levado a sério, sem qualquer corporativismo e conotações que não sejam estritamente éticas na sua investigação, é preciso que o Conselho Federal de Medicina se posicione com uma voz pública, uma declaração, que não será um julgamento antecipado do médico, mas deve tratar o caso com tolerância zero. Ou seja, o CFM precisa tratar como inaceitável que médicos sejam abusadores e que pratiquem violências brutais.

Esses profissionais não podem se comportar de maneiras que não sejam com o dever do cuidado. Não é uma antecipação pública de julgamento, não é se antecipar ao direito de defesa de todas as pessoas, mas a voz institucional sobre a sua posição intransigente contra qualquer forma de violência é necessária. O silêncio é uma forma de conivência política a esses casos.

Por que o corpo da mulher é sempre tão vulnerável a crimes como esse? Há recortes de classe, raça e identidade de gênero nesses abusos?

Debora DinizEu não tenho a menor dúvida que existe um recorte. Há, inclusive, um estudo recente, publicado pelo Journal of the American Medical Association e noticiado pelo The Guardian , que mostra como na medicina, ou seja, nos cuidados com a saúde, faz muita diferença a mulher cuidadora do que o homem cuidador. A pesquisa destaca os cirurgiões e revela que as mulheres cuidadas por homens têm mais efeitos colaterais, inclusive risco de morte acrescido do que quando cuidadas por mulheres.

E por que isso? Porque os corpos das mulheres no campo da saúde são corpos permanentemente medicalizados, permanentemente tocados e atravessados pelo poder médico. As mulheres pobres, as mulheres negras, as mulheres com deficiência, as mulheres jovens, as mais idosas, ou seja, há recortes etários também, têm corpos ainda mais vulnerabilizados por esse abuso de poder. No campo médico, é um abuso de poder que vai desde maus tratos até a violência sexual. E há também, na vida cotidiana, a persistência da violência como um regime de poder de controle normatizador dos corpos das mulheres.

Como sociedade, o que precisamos fazer para proteger as mulheres desses abusos?

Debora DinizTermos o caráter intransigente. Precisamos, sim, fazer como fez essa equipe de enfermagem, insistir em denunciar, insistir em tornar público. Nós não podemos mais ser cúmplices do silêncio, em qualquer posição que ocupemos na vida, não podemos ser cúmplices dessas formas de opressões estruturais, e o silêncio é uma delas.

Como mulher, é estarrecedor ler casos assim, repetidamente. Bate uma sensação de impotência muito grande. Como lidar com isso?

Debora Diniz Há uma sensação profunda de impotência, inclusive de medo, e nós precisamos encontrar formas de transformação. E ela só vai vir coletivamente: coletivamente como mulheres nos nossos diferentes espaços da vida, como jornalistas, professoras, pesquisadoras, médicas. É preciso união para transformar dentro dos nossos espaços de existência e poder desafiar dizendo que não é normal, não é natural e que nós não suportamos mais.

Então, precisamos cuidar das vítimas, e no campo do jornalismo, por exemplo, a mim é inaceitável a circulação da imagem dura, bruta, do momento do ato da violência. Ali existe uma mulher concreta, não basta cobrir o rosto, não basta cobrir o ato violento, é ela, e ela sabe que é ela. Precisamos fazer perguntas também sobre como nós falamos, como circulamos, como nós enfrentamos essas cenas e esses eventos brutais de violência.

NEWSLETTER GRATUITA

Nexo | Hoje

Enviada à noite de segunda a sexta-feira com os fatos mais importantes do dia

Este site é protegido por reCAPTCHA e a Política de Privacidade e os Termos de Serviço Google se aplicam.

Gráficos

nos eixos

O melhor em dados e gráficos selecionados por nosso time de infografia para você

Este site é protegido por reCAPTCHA e a Política de Privacidade e os Termos de Serviço Google se aplicam.

Navegue por temas