O que é ‘memecracia’. E como ela afeta o debate político
Isadora Rupp
20 de agosto de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h40)Uso de memes domina campanha eleitoral de 2022. Professor analisa ao ‘Nexo’ como esse mecanismo de comunicação digital se insere na propaganda e no discurso dos candidatos
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Imagem memética de boneco inflável de Jair Bolsonaro usada em protesto em apoio ao armamento, em Brasília
Após anunciar a redução de imposto a produtos importados como o whey protein em sua tradicional live às quintas-feiras, o perfil do presidente Jair Bolsonaro (PL) no Instagram postou uma montagem do corpo de um fisiculturista com o rosto do presidente, enaltecendo a medida. Seja para criticar ou elogiar o anúncio, o fato é que a palavra “whey”, ficou entre os assuntos de política mais comentados no Twitter na sexta-feira (19), e a imagem viralizou.
O modo de comunicação digital de Bolsonaro é conhecido, e foi uma estratégia relevante para a chegada do ex-deputado de baixo clero à Presidência da República em 2018, ano em que tinha pouca estrutura partidária e tempo de TV mínimo na propaganda eleitoral. A linguagem foi mantida ao longo do seu governo, com desprezo à imprensa e aos meios tradicionais.
Na tentativa de eleger Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 2022, a esquerda vem correndo atrás do prejuízo. Viralizou fotos de Lula usando óculos escuros estilo Juliet, entrou em plataformas como a rede de vídeos TikTok, antes dominada pelo candidato de extrema direita, e fez uma guinada em busca de maior espaço nas mídias sociais. Movimento que incluiu, recentemente, a incorporação da destreza digital do deputado André Janones (Avante), que desistiu da candidatura à Presidência para apoiar o petista.
Pediram para dar uma rejuvenescida nas redes. Nova foto do perfil. Tiktok e Kwai em breve. #EquipeLula
— Lula (@LulaOficial) April 22, 2022
📸: @ricardostuckert pic.twitter.com/7ergwwSwFH
Os dois comportamentos indicam que estamos em uma “memecracia”, ambiente comunicacional dominado por imagens sintéticas e mensagens condensadas. Com a “memecracia”, “o debate político se transforma em um debate muito superficializado, com pouca profundidade”, disse ao Nexo Viktor Chagas, professor da UFF (Universidade Federal Fluminense).
Docente do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da UFF e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital, Chagas se dedica a estudos sobre o uso de memes na comunicação política. Nesta entrevista ao Nexo , o professor explica os motivos de a estratégia ser fundamental para a eleição em 2022 e apresenta os prós e os contras da linguagem para o debate político.
Viktor Chagas É difícil definir marcos históricos para esse tipo de uso, pois há o uso dos memes mais estratégico por parte dos candidatos e também por parte do eleitorado, com tom mais satírico voltado ao candidato. De qualquer forma, as eleições de 2014 se notabilizaram aqui no Brasil. Porque é a partir daí que os memes começam a fazer parte da paisagem da campanha eleitoral, assumida como parte da comunicação política de alguns candidatos, com um deles em particular, Eduardo Jorge [que concorria à Presidência pelo PV]. Ele despontou como o rei dos memes naquela ocasião. Mas era candidato minoritário, que não teria muito o que perder ao usar essa estratégia.
Antes disso, em 2008, nas campanhas municipais, tivemos o caso do Rio de Janeiro, largamente viral, conduzido pelo Fernando Gabeira [candidato a prefeito naquele ano], que chegou ao segundo turno inclusive [teve 49,17% dos votos ; Eduardo Paes venceu com 50,83%] com a tal “onda verde” inspirada em estratégias que já vinham sendo assumidas em outros países. Nos Estados Unidos, desde 2004 a gente tem campanhas de disseminação viral, com correntes de e-mail e coisas do tipo.
Em 2010, tivemos um passo importante com a criação de alguns personagens fake que circulavam nas redes sociais. É o caso da Dilma Bolada, por exemplo [sátira da ex-presidente Dilma Rousseff]. De lá para cá muita coisa mudou. Naquela altura os memes eram usados sobretudo como um recurso lateral na estratégia de campanha. Hoje são centrais.
Viktor Chagas Resumidamente, consiste na ideia que estamos lidando com um ambiente democrático que é cada vez mais largamente definido, encontra seu ambiente comunicacional a partir de imagens sintéticas, condensadas, que eventualmente se traduzem em mensagens de caráter superficial. O debate político se transforma em um debate muito superficializado em função das imagens e imaginários que passam a circular. Se torna uma política de frases curtas, de bordões, com pouca profundidade no debate público.
Em uma memecracia, os memes cumprem um papel, para o bem e para o mal. Ou seja: ao mesmo tempo que você tem um largo acesso à informação política, que chega a uma camada da população que antes não tinha acesso a essas pautas, por outro lado, isso se traduz num debate superficial. É uma faca de dois gumes.
A linguagem de tonalidade apolítica tem dado o tom do debate. Os memes entram por conta disso, mas não apenas. Se pensarmos como o Lula tem comentado a novela “Pantanal” nas redes sociais, e outras pautas que podem parecer aleatórias, por exemplo. Isso diz respeito a uma comunicação protagonista dos últimos ciclos eleitorais, sem que a gente se dê conta disso, que é essa linguagem apolítica. Se olharmos para conteúdos publicados por políticos no TikTok, há uso excessivo de memes que não dizem respeito a assuntos políticos. Vídeos com esquetes de humor, coreografias, dublagens.
Esse tipo de estratégia vem dominando a política de maneira subterrânea e cumpre uma função muito importante de furar bolhas. Quem sabe lançar mão melhor disso vai se sair melhor. Os candidatos de extrema direita têm sabido fazer muito bem o uso dessa linguagem apolítica. Conseguem alcançar um protagonismo na plataforma meramente em função do tipo de conteúdo que publicam. Valorizado não apenas pelos usuários, mas pela plataforma. Com isso, as dancinhas e esquetes de humor ganham destaque, e fazem o nome do candidato circular.
Viktor Chagas Em termos de estratégia eleitoral tem sido muito bem-sucedida, e o resultado reforça a natureza do modelo de comunicação populista que Bolsonaro e seu governo têm adotado. A definição de memecracia, que superficializa o debate público, está muito associada às estratégias retóricas populistas, simplificando de modo grosseiro a realidade. No cálculo pura e friamente eleitoral, essa é uma estratégia que tem dado muito certo.
Meme com Bolsonaro e Putin que circulou nas redes bolsonaristas
Se a gente pensar nos efeitos ao ambiente democrático, se torna um modelo de comunicação e gestão extremamente pernicioso. Em particular, não apenas do uso dos memes, mas o modo como são usados. Precisamos olhar para diferenças importantes entre o modo como as extremas direitas fazem uso dos memes e o modo como o campo progressista tem procurado fazer uso desse mesmo recurso.
O uso dos memes por Bolsonaro é muito eficaz. Ele emprega os memes e a linguagem do humor para construir uma certa aproximação com o público. Não à toa temos o reforço de imagem que caracteriza esse tom populista da campanha. Se a gente pensar em Bolsonaro tomando café da manhã com pão e leite condensado, sem prato, dando entrevista coletiva em cima de uma prancha de surfe, fazendo alusão inclusive a uma igreja que o apoia, que é a Bola de Neve.
Todas essas imagens são deliberadamente e esmiuçadamente construídas para constituir essa aproximação com o usuário comum das redes sociais, e para se transformar em meme. Há um tom de humor depreciativo: ele assume que é um sujeito que sabe brincar e rir de si mesmo, mas também a condição de alguém que está ali sempre para provocar.
Viktor Chagas Não descarto completamente as experiências que movimentos de esquerda e do campo progressista têm feito a partir dos memes. Grande parte das pautas e agendas públicas de movimentos sociais nos últimos anos se constituiu muito em função de algumas estratégias de ação memética. Se a gente pensar nas hashtags feministas, como #meuamigosecreto, #primeiroassédio, #meetoo e uma série de outras, todas elas consistem fundamentalmente em um tipo de ativismo digital que emprega uma espécie de repertório memético. É uma hashtag com uma estrutura comum e mimetizada por diferentes usuários.
Não se trata da esquerda não saber fazer uso dos memes. Ela sabe. Mas eu diria que a esquerda tem um conjunto de constrangimentos para empregar esse tipo de repertório que, eventualmente, atores da extrema direita não têm. E esses constrangimentos são típicos do ambiente democrático.
Ou seja, fazer uma piada racista, misógina, homofóbica – esse tipo de constrangimento, a extrema direita não tem. E isso faz muita diferença no fim das contas. O modo como Bolsonaro e seus apoiadores mobilizam os memes: vamos perceber o emprego de um humor derrogatório, que expressa uma certa superioridade. Ele procura espezinhar o outro. A natureza intrínseca dessa piada é justamente se colocar acima do outro. E a gente não vê com tanta facilidade, não estou dizendo que não haja expressões racistas e misóginas no humor de esquerda, é preciso ressaltar, mas há naturalmente um conjunto de constrangimentos maior. Porque estamos falando de um campo democrático. Isso marca a diferença no modo como esses dois lados empregam os memes.
Viktor Chagas André Janones ocupa um lugar privilegiado nesse momento da campanha. A gente sabe há algum tempo dessas dificuldades do campo progressista em embarcar nesse tipo de estratégia. Mas, de modo geral, as esquerdas, sobretudo as partidárias, os movimentos sindicais e partidos de esquerda que ocuparam durante muito tempo um campo majoritário no Brasil, têm modelos de comunicação um pouco envelhecidos.
Luiz Inácio Lula da Silva e André Janones em reunião da campanha petista
Nesse sentido, Janones entra para renovar essa comunicação digital, mas não apenas isso. Ele ocupa posição privilegiada sobretudo porque não integra o mesmo partido que o ex-presidente Lula. Isso significa que, se por um lado, pode despertar uma certa “ciumeira”, como muitos analistas políticos vêm comentando, por outro significa que ele tem liberdade maior para assumir determinadas posturas que não comprometem a candidatura de Lula. É possível que ele assuma uma postura mais próxima da de Bolsonaro e seus apoiadores, nessa ideia de condição de construir o seu humor em cima de uma certa posição de superioridade. Janones brinca com essa ideia o tempo todo, como se a palavra final fosse dele. Não é posição de escada: ele se arvora a condição de falar por último.
Essa é uma semelhança muito grande que eu vejo no modelo retórico que esses dois atores [Bolsonaro e Janones] têm assumido. Com aquela retórica da “lacração”, de ter um posicionamento mais incisivo sobre determinadas pautas. Isso é muito vantajoso para o PT do ponto de vista estratégico.
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