O que fazer para nunca mais repetir um 8 de janeiro no Brasil
Isabela Cruz
07 de janeiro de 2024(atualizado 12/02/2025 às 18h56)Em oito perspectivas, especialistas em política, redes sociais, militares e direito apontam caminhos para que ataques à democracia como a invasão dos prédios dos Três Poderes não voltem a ocorrer
Bandeira rasgada é substituída na Praça dos Três Poderes, em Brasília
Um ano após o ataque da turba bolsonarista aos prédios dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023, o Supremo Tribunal Federal condenou 30 pessoas, com penas que passam de 15 anos de prisão em parte dos casos. Há centenas de denunciados, entre os quais PMs do Distrito Federal apontados como omissos. Apenas um financiador foi acusado formalmente. Organizadores e mentores intelectuais do ataque ainda estão sob investigação em inquéritos da Polícia Federal, sob a guarda do ministro da corte Alexandre de Moraes, assim como integrantes das Forças Armadas envolvidos na trama.
Uma CPI foi realizada pelo Congresso e apontou diversas pessoas que deveriam ser responsabilizadas, incluindo Jair Bolsonaro. O ex-presidente, além de investigado pela empreitada golpista, está inelegível, por decisão da Justiça Eleitoral, devido ao uso da máquina pública para a divulgação de mentiras sobre o sistema eletrônico de votação. Uma ação penal contra o líder de extrema direita e outros políticos que alimentaram o desrespeito ao resultado das urnas ainda depende da Procuradoria-Geral da República, sob novo comando em 2023.
Já as redes sociais, onde a campanha de desinformação contra o sistema eleitoral e outros pilares democráticos se alastrou, permanecem submetidas à mesma lei que regia o mundo digital antes do quebra-quebra promovido no Congresso, no Palácio do Planalto e no Supremo.
Bolsonaristas invadem prédios dos Três Poderes em Brasília no dia 8 de janeiro de 2023
Diante desse cenário, o Nexo perguntou a oito especialistas, de esferas diversas, o que é preciso fazer para que nunca mais um 8 de janeiro se repita no Brasil. Veja abaixo o que eles disseram levando em conta as áreas da política, das comunicações, dos militares e do direito.
Heloisa Murgel Starling
professora titular de história da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), onde coordena o Projeto República: núcleo de pesquisa, documentação e memória
“É fácil entender as razões que levam governantes com vocação totalitária a fraudar a história como técnica de poder. O bolsonarismo, a linguagem ideológica de Bolsonaro, entendeu que modelar um passado bem falsificado e alinhavado ideologicamente pode ser uma forte motivação política. Em um esforço sistemático, o presente imediato é apresentado como o tempo do desfazimento: tempo de decadência religiosa, corrupção na política, degradação dos costumes, perda de privilégios, frustração de expectativas, insegurança social. Defende-se partir rumo ao Brasil do passado, estrategicamente ancorado na reescrita fraudulenta sobre o golpe de Estado em 1964 e os 21 anos de ditadura militar.
O historiador é um perigo para as tiranias porque seu trabalho se sustenta em uma única modalidade de verdade – a verdade factual –, e eliminá-la faculta ao governante dar um passo no sentido do totalitarismo, argumentava a pensadora política Hannah Arendt. Se a confiança na sua veracidade histórica for eliminada, as pessoas acreditam no que querem ouvir. As consequências são imediatas para a democracia: deixa de existir uma base factual para se questionar o Poder. E aqueles que escolhem o mal menor, a omissão, muitas vezes se esquecem de que ainda sim optaram pelo mal, Arendt disse.
A fraude histórica conseguiu fornecer a matéria-prima com que se fabricou a tentativa de golpe de Estado, no dia 8 de janeiro de 2023. Por outro lado, história não é destino. O que protege a liberdade é nossa capacidade de mobilizar as pessoas em sua defesa. Talvez seja possível reunir as pessoas, defender a verdade factual e os princípios democráticos de forma radical, agora e depressa. Vale a insistência: ainda temos tempo.”
Maria do Socorro Sousa Braga
coordenadora do programa de pós-graduação em ciência política da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e do Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos Latino-americanos do CNPq
“O sistema partidário precisa reforçar as funções de representação social e governativa dos partidos políticos, por mais que estes atuem como um instrumento e uma forma de organização do poder. Em bases mais democráticas, no médio prazo a extrema direita se enfraquece, reduzindo as chances de um novo 8 de janeiro.
No que diz respeito à função de representação dos interesses sociais, o sistema partidário necessitará recompor o centro político, combalido nos últimos dez anos. Terá que reduzir ainda mais a fragmentação do campo da direita tradicional, fortalecendo programaticamente os partidos relevantes. E, ao campo da esquerda, caberá retomar suas vinculações com o mundo dos movimentos sociais e populares em tempo de sociabilidade digital.
Sessão de promulgação da reforma tributária no Congresso
Portanto, um traço crucial para essa reestruturação do sistema partidário será sua dimensão programática. Quanto mais os partidos conseguirem se diferenciar programaticamente, propondo ao eleitor políticas públicas alternativas e exequíveis, maior a inteligibilidade dos cidadãos em diferenciar os partidos por suas propostas de governo, e, consequentemente, a estruturação das preferências políticas será realizada de modo mais amigável.”
Isabela Kalil
professora da FespSP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo) e coordenadora do Observatório da Extrema Direita
“Para prevenir ataques como o do 8 de janeiro, é crucial compreender que tais atos extremistas não são eventos isolados, mas sim o resultado de um processo gradual. Esse processo teve início quatro anos antes, especificamente em 31 de março de 2019. Naquela data, apoiadores de Bolsonaro se reuniram em atos diante dos quartéis do Exército para celebrar o golpe de Estado de 1964.
Em 2020, as tentativas de invasão do Congresso e da Suprema Corte foram emblematicamente representadas pelo acampamento dos ‘300 do Brasil’. Este episódio foi um claro exemplo da agenda e das formas de atuação de tais movimentos radicalizados. No ano de 2021, as chamadas motociatas e a mobilização do 7 de setembro atingiram seu ápice, funcionando como ensaios para a mobilização de insurgência no espaço público e no ambiente digital. Esses eventos serviram como plataformas para a disseminação de ideologias extremistas e a organização de ações coordenadas, marcando uma escalada preocupante na forma como tais grupos se comunicam e se mobilizam nas redes e nas ruas.
O grupo bolsonarista “300 do Brasil” em manifestação
Tal compreensão é vital para a identificação e contenção de ações extremistas em estágios iniciais, evitando sua escalada para incidentes mais graves. Reconhecer a natureza progressiva desses movimentos é fundamental para a prevenção. Isso envolve monitorar e agir sobre discursos de ódio no ambiente digital, fortalecer a educação e a conscientização sobre a importância da democracia e do respeito às instituições e promover diálogos e entendimentos entre diferentes grupos sociais para mitigar a polarização.”
Marie Santini
professora da Escola de Comunicação da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), fundadora e diretora do NetLab, laboratório de pesquisa das redes sociais
“Os ataques do 8 de janeiro foram consequência de uma campanha de desinformação permanente e em larga escala contra as instituições democráticas e a integridade eleitoral. A propagação de desinformação incitando golpe de Estado ocorre de forma sistemática nas redes digitais há alguns anos no Brasil, e as plataformas tiveram um papel central nisso.
A arquitetura e os algoritmos das plataformas permitem que conteúdos falsos e extremistas sejam distribuídos às pessoas mais propensas a narrativas tóxicas, fomentando o discurso de ódio e a concretização de atos violentos. O modelo de negócios dessas empresas permite o impulsionamento de qualquer tipo de conteúdo (inclusive falso, tóxico e de incitação aos ataques), de forma segmentada porém sem transparência, e lucra com a estruturação de uma indústria da desinformação. Já a moderação de conteúdo das plataformas é uma caixa preta: não sabemos seus critérios nem seus recursos.
Aplicativos de redes sociais em uma tela de celular
Portanto, evitar que episódios como os do 8 de janeiro se repitam exige que o Congresso aprove com urgência um projeto de lei que regule a atuação dessas plataformas no país, lhes impondo transparência sobre algoritmos, moderação e publicidade, além de responsabilidade sobre riscos sistêmicos que seus serviços podem causar. O objetivo é tornar o ambiente digital mais seguro, protegendo usuários, consumidores e as próprias instituições brasileiras.”
Antonio Jorge Ramalho
professor do Instituto de Relações Internacionais da UnB (Universidade de Brasília), especialista em defesa nacional
“O 8 de janeiro simbolizou a profunda divisão na sociedade brasileira. É ingênuo supor que os militares, que também integram essa sociedade, não estejam também divididos em relação àquele evento. O envolvimento direto de militares na política, aliás, está longe de ser novidade na República brasileira, [estando presente] desde sua proclamação. Isso não convém a uma democracia robusta.
O primeiro passo para evitar o envolvimento de militares em uma nova tentativa de golpe consiste, pois, em reconhecer essa realidade histórica e destinar as Forças Armadas exclusivamente à sua missão: preparar-se para a guerra. Para isso, o Ministério da Defesa precisa exercer autoridade efetiva sobre os comandantes das Forças, em vez de funcionar como autarquia a cargo de despachar os interesses corporativos junto a outros órgãos.
Isso pressupõe estabelecer na pasta carreira civil permanente, fixar unidade de comando em tempos de guerra e criar uma base logística de defesa. A lei também deve obrigar militares que queiram ser políticos a desvincularem-se totalmente das instituições, deixando de usar sua patente para angariar votos e simpatias. Tudo isso trará benefícios inclusive ao preparo da força militar, em um mundo no qual a probabilidade de seu emprego cresce exponencialmente ano após ano.”
Adriana Marques
professora do bacharelado em defesa e gestão estratégica internacional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), especialista nas relações civis-militares
“Para contar a história do 8 de janeiro de 2023, precisamos retornar a outubro de 1988. Redigido sob o signo da tutela militar que caracterizou o governo José Sarney, o artigo 142 da Constituição permitiu que as Forças Armadas continuassem atuando no âmbito doméstico em amplo conjunto de tarefas não militares. Isso cristalizou em parte da população a percepção de que os militares estariam preparados para substituir outras agências governamentais ou o próprio governo. Calcificou-se a ideia de que os militares seriam os tutores da República.
O artigo 142 foi assim evocado com frequência na última década. Fizeram isso movimentos de extrema direita, o então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, e os apoiadores do ex-capitão Jair Bolsonaro, após a derrota eleitoral em 2022. Foi do acampamento golpista montado em frente ao Quartel-General do Exército, pedindo a “aplicação do artigo 142”, que partiu a turba que depredou os prédios dos Três Poderes.
Manifestantes pedem intervenção militar após a derrota de Jair Bolsonaro nas eleições 2022.
Um passo importante para se evitar um novo 8 de janeiro é, portanto, retirar do texto constitucional qualquer ambiguidade que dê margem à atuação política dos militares e alimente o militarismo latente de parte da sociedade. Além disso, o Legislativo precisa assumir um papel mais assertivo no monitoramento da política de defesa e na revisão periódica dos documentos normativos do setor. O Executivo deve criar a carreira civil no Ministério da Defesa e retirar da pasta os programas de natureza civil. Academia, think tanks e imprensa também devem monitorar as atividades militares. Enquanto essas tarefas não forem cumpridas, não teremos uma democracia plena no Brasil.”
Antonio Maués
professor titular de direito constitucional da UFPA (Universidade Federal do Pará)
“Após os atos golpistas do dia 8 de janeiro de 2023, a Lei nº 14.197/21 [que incluiu no Código Penal os crimes contra o Estado democrático de Direito] mostrou-se adequada para defender a democracia, possibilitando ao STF [Supremo Tribunal Federal] sancionar os crimes de abolição violenta do Estado democrático de Direito e de golpe de Estado.
Porém, o papel que as redes sociais exercem na criação e difusão de movimentos antidemocráticos demanda o aperfeiçoamento dos instrumentos de defesa da ordem constitucional. Na histórica decisão do TSE [Tribunal Superior Eleitoral] que declarou a inelegibilidade de Jair Bolsonaro, o tribunal utilizou o conceito de “desordem informacional” para tipificar o abuso de poder político cometido pelo então presidente.
Essa jurisprudência contribui para orientar a aplicação das normas eleitorais contra agentes políticos que utilizam as redes sociais para desestabilizar as instituições democráticas. Além disso, é necessário desenvolver mecanismos de responsabilização das próprias plataformas digitais para impedir que, por meio de seus algoritmos, elas continuem servindo de base para a organização de ataques à democracia e aos direitos humanos.”
Wallace Corbo
professor de direito constitucional da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e da FGV (Fundação Getulio Vargas)
“A resposta do sistema de justiça ao 8 de janeiro foi especialmente ágil quando comparada com experiências semelhantes, a exemplo dos ataques promovidos contra o Congresso norte-americano. Apesar disso, 2023 se encerrou sem que se tenham sido concluídas todas as medidas necessárias para responsabilizar aqueles que lideraram os atos golpistas e, com isso, prevenir novos atentados à democracia.
É preciso que em 2024 o Ministério Público lidere os esforços de investigação e persecução penal dos verdadeiros organizadores dos atentados. É certo que alguns líderes políticos inquestionáveis da tentativa de golpe foram responsabilizados em outras searas e por outros atos – exemplo disso é a declaração de inelegibilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro. É preciso, no entanto, que a culpabilidade também pela organização desses atentados seja devidamente apurada e, sendo o caso, que tenha sequência a responsabilização criminal.
Ato em São Paulo no dia 11 de agosto de 2022, em defesa da democracia
Tampouco faltam indícios e evidências de que houve ao menos apoio à tentativa de golpe por militares da ativa e da reserva – apoio sem o qual os acampamentos antidemocráticos sequer teriam existido. O governo Lula, porém, não dá qualquer indício de que voltará esforços políticos para a responsabilização daqueles que sonharam com um novo 1964. A responsabilização criminal só pode ocorrer perante o sistema de justiça, com o respeito ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa. A mobilização política é essencial, contudo, para assegurar que a pauta não se esvaeça e que não sejam vitoriosos os que tentam jogar o 8 de janeiro para debaixo do tapete. Em 2023, o Brasil resistiu. Em 2024, é preciso avançar.”
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