Expresso

O que é arquitetura hostil. E quais suas implicações no Brasil

Juliana Sayuri

03 de fevereiro de 2021(atualizado 28/12/2023 às 22h57)

Instalação de pedras para impedir permanência de pessoas em situação de rua debaixo de viaduto em São Paulo foi alvo de críticas. Cidades brasileiras acumulam exemplos do chamado ‘design desagradável’

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FOTO: REPRODUÇÃO/TWITTER

Sob um viaduto, Padre Julio Lancelotti se apoia em uma bengala em frente a fileiras de pedras no chão, algumas danificadas

Padre Julio Lancelotti apoia-se em bengala sob viaduto em São Paulo, onde pedras foram instaladas no chão pela prefeitura

Na terça-feira (2), o padre Julio Lancellotti quebrou a marretadas pedras instaladas pela prefeitura de São Paulo debaixo do viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida. Os paralelepípedos visavam evitar a presença de pessoas em situação de rua no viaduto na avenida Salim Farah Maluf, na zona leste da capital paulista.

“É higienismo” , disse Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo, ao jornal Folha de S.Paulo, ao criticar a medida municipal e justificar a sua ação.

O prefeito Bruno Covas (PSDB) não se manifestou , mas a prefeitura alega que a decisão de instalar os paralelepípedos foi tomada de forma isolada por um funcionário, que já teria sido exonerado – não foi informada a identidade dele ou o departamento que integrava. Na terça (2), a prefeitura começou a retirar as pedras do local.

No Twitter, críticos se referiram à instalação como “arquitetura da exclusão” – entre eles, políticos como Guilherme Boulos (PSOL) e Jilmar Tatto (PT).

Exclusão arquitetural ( “architectural exclusion” , em inglês) refere-se a como a estrutura de espaços urbanos pode discriminar e segregar certos indivíduos – frequentemente, pobres e negros, assinala a autora americana Sarah Schindler na revista The Yale Law Journal.

No documentário “Arquitetura da Exclusão” (2010), o diretor potiguar Daniel Lima aborda os muros, visíveis e invisíveis, nos centros urbanos – o filme foca no morro Santa Marta, primeira favela a ser cercada por muros construídos pelo estado do Rio de Janeiro.

Além de exclusão arquitetural, outras expressões buscam tratar do tema criticamente nas cidades, como “design desagradável”, “arquitetura antimendigo” e “arquitetura hostil”.

No livro “Unpleasant Design” , os autores Selena Savic e Gordon Savicic definem “design desagradável” como estruturas para impedir determinados comportamentos e usos do espaço público. No Brasil, há um longo histórico de iniciativas deste tipo, com instalação de pedras, pinos metálicos, grades, arames e outros materiais para impedir a presença de pessoas em situação de rua .

O que é arquitetura hostil

“Arquitetura hostil” se refere a estratégias de design urbano que utiliza elementos para restringir certos comportamentos nos espaços públicos, dificultar o acesso e a presença de pessoas, especialmente pessoas em situação de rua.

O termo ( “hostile architecture” , em inglês) ficou famoso após a publicação de uma reportagem no diário britânico The Guardian, em junho de 2014.

Segundo o historiador especializado em arquitetura Iain Borden, citado pelo repórter Ben Quinn, a emergência deste estilo de arquitetura hostil data da década de 1990, nas gestões de um desenho urbano que sugere, segundo suas palavras, “que só somos cidadãos se estamos trabalhando ou consumindo bens diretamente”. Isto é, não trabalhar e não consumir quer dizer não poder estar presente como cidadão de uma cidade.

“Por isso é aceitável, por exemplo, ficar sentado, desde que você esteja num café ou num lugar previamente determinado onde podem acontecer certas atividades tranquilas, mas não ações como realizar performances musicais, protestar ou andar de skate” , disse Borden à época.

Eduardo Souza e Matheus Pereira, editores do site especializado em arquitetura e urbanismo ArchDaily, dão diversos exemplos de construções e objetos que podem “afastar ou excluir pessoas ‘indesejáveis ’”: cercas elétricas, arames farpados, grades no perímetro de praças e gramados, bancos públicos com larguras inferiores ao recomendado pelas normas de ergonomia, bancos curvados ou ainda assumindo geometrias irregulares, lanças em muretas e guarda-corpos, traves metálicas em portas de comércios, pedras em áreas livres, gotejamento de água em intervalos estabelecidos sob marquises.

FOTO: JONATHAN WONG/SOUTH CHINA MORNING POST/GETTY IMAGES

Pequenas pedras instaladas no chão de um parque

Pedras instaladas no chão impedem descanso em áreas abrigadas de parque em Hong Kong

Nos últimos anos, o termo também vem sendo incorporado por pesquisadores acadêmicos, em estudos de caso de cidades como Curitiba e Cascavel (PR) , João Pessoa (PB) , Juiz de Fora (MG) e Recife (PE) .

“Quando a arquitetura se reveste de formas limitadoras – visuais, físicas e sociais – essa arquitetura é hostil”, escrevem Shayenne Barbosa Dias e Cláudio Roberto de Jesus, do programa de pós-graduação em estudos urbanos e regionais UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), na revista acadêmica Geografias. Segundo os autores, à medida em que a arquitetura hostil afasta pessoas deixando áreas desertas, retroalimenta-se a sensação de insegurança urbana.

O histórico de exclusão arquitetural no Brasil

“Arquitetura antimendigo” foi a expressão escolhida por uma reportagem da Folha de S.Paulo de setembro de 1994. Na época, o jornal registrou que o número de pessoas em situação de rua em São Paulo (4.000) teria motivado a construção de prédios sem marquises ou cercadas por grades e a instalação improvisada de chuveiros para molhar o chão e afugentar quem busca abrigo à noite.

Sob os viadutos dos Bandeirantes e 11 de Junho, na zona sul da cidade, a prefeitura (sob gestão de Paulo Maluf, à época no PPR) pôs grades e canteiros para dificultar o acesso dos sem-teto a áreas cobertas.

Em 2005, a gestão do então prefeito José Serra (PSDB) começou a instalar rampas de concreto na passagem subterrânea que liga a avenida Paulista à avenida Doutor Arnaldo. O objetivo era inviabilizar a permanência de transeuntes, o que fez com que a iniciativa fosse informalmente batizada de “rampa antimendigo” .

Em 2007, a prefeitura (sob gestão de Gilberto Kassab, então no PFL) reinaugurou a praça da República, no centro, mas incluiu “bancos antimendigo” , como ficaram conhecidos os bancos com divisórias de ferro para impedir que os visitantes deitassem neles.

Em 2014, a prefeitura paulistana fez canteiros de paralelepípedos ao redor de pilastras da linha 1-azul do metrô na avenida Cruzeiro do Sul, na zona norte da cidade, onde costumavam dormir pessoas. Na época, a administração de Fernando Haddad (PT) declarou que os paralelepípedos visavam evitar fogueiras acesas ali, o que poderia prejudicar as pilastras.

Em Porto Alegre , foram instaladas barreiras de concreto em uma passarela que atravessa a avenida Ipiranga, onde pedintes ficavam concentrados, em 2007. No Rio , a prefeitura implantou pedras para que ninguém se instalasse debaixo do viaduto Engenheiro Noronha, na zona sul, em 2017. Em Curitiba , um condomínio acrescentou barras com pinos de ferro aos bancos da rua, em 2018.

O impacto da pandemia para a população de rua

Segundo dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), a população em situação de rua cresceu 140% desde 2012, totalizando quase 222 mil brasileiros em março de 2020. O impacto da pandemia nas cidades também expôs a crise da moradia no Brasil .

Na capital paulista, as pessoas não estão morando mais apenas embaixo, mas dentro de buracos de pontes e viadutos, revelou uma reportagem do UOL de janeiro de 2021.

“Muito se discute acerca dos impactos desiguais da pandemia de coronavírus em populações vulneráveis. Entre os grupos em evidência pelo risco, a população em situação de rua, marcada pelas condições extremas de pobreza, anuncia-se como um dos grupos prioritários, alvo de mobilizações, iniciativas diversas e demandas da sociedade civil”, argumentam os pesquisadores Kelseny Medeiros Pinho, Luiz Tokuzi Kohara, Bruna Cespedes e Larissa França Ferraz, no LabCidade (Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade), da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. “É um momento que exige o senso humanitário de todos os gestores públicos”, destacam.

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