Expresso

O que a ciência já respondeu sobre a variante brasileira

Estêvão Bertoni

01 de março de 2021(atualizado 28/12/2023 às 22h59)

Segundo pesquisa, espalhamento de vírus mais transmissível seguiu fluxo de tráfego aéreo. Reino Unido tenta identificar e isolar infectados por mutação de Manaus

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FOTO: ADRIANO MACHADO/REUTERS – 25.MAR.2020

Imagem mostra painel com horários de voo e aviso: "Coronavírus: informação é a melhor prevenção". Pessoas passam na frente do letreiro, usando máscaras de proteção, mas estão desfocadas

Passageiros caminham em saguão do Aeroporto Internacional de Brasília

Uma variante do novo coronavírus surgida no final de 2020 em Manaus tem preocupado autoridades sanitárias do Brasil e do mundo devido ao seu maior potencial de contágio. A mutação, chamada de P.1, está associada ao segundo colapso do sistema de saúde do Amazonas, ocorrido entre dezembro e janeiro, e já forçou cidades como Araraquara, no interior paulista, a decretar o fechamento do comércio não essencial, por ter se espalhado pela região. Ela também colocou o governo britânico em alerta.

No domingo (28), o Reino Unido identificou seis casos da variante brasileira, sendo três deles na Inglaterra e os outros três na Escócia. Como um dos doentes não preencheu o cartão de identificação que acompanha o teste de covid-19 para passageiros que chegam ao país, o governo decidiu realizar na segunda-feira (1º) uma “caçada” para identificar a pessoa infectada, com o objetivo de isolá-la e evitar a disseminação do vírus. O país irá fazer testes em massa e rastrear todos os viajantes que chegaram do Brasil no início de fevereiro.

O Reino Unido já sofre com uma variante local mais transmissível, batizada de B.1.1.7. Para contê-la, o país adotou um terceiro lockdown em dezembro e intensificou a campanha de vacinação. As medidas já vêm apresentando resultados, como a redução na internação de idosos.

No Brasil, a variante P.1 já foi identificada em ao menos 17 estados . Especialistas acreditam que ela pode estar associada ao aumento de casos, mortes e internações que levaram o país a alcançar o pior momento da pandemia em fevereiro. Até o final do mês, metade dos estados brasileiros estava em situação crítica, com taxa de ocupação das UTIs (Unidades de Terapia Intensiva) superior a 80%.

As mutações são comuns e esperadas. Elas acontecem por causa de falhas na replicação do vírus no organismo. Quanto mais o coronavírus circula de forma descontrolada, como vinha acontecendo no Brasil devido ao afrouxamento das medidas de isolamento social, maiores as chances de surgirem variantes com vantagens evolutivas.

As origens da variante

Um estudo conduzido por pesquisadores da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) Amazônia, publicado no final de fevereiro de 2021 e ainda não revisado por outros cientistas, mostrou que a P.1, identificada pela primeira vez no estado em 4 de dezembro de 2020, passou a responder pela maioria dos casos de infecção em um mês e meio.

Os pesquisadores sequenciaram o genoma de 250 amostras do vírus colhidas em 25 municípios do Amazonas entre 16 de março de 2020 e 13 de janeiro de 2021. Em novembro, não havia nenhum caso da P.1. Em meados de dezembro, a mutação já respondia por 4% dos casos. No final do mês, era responsável por 45% dos casos, e por 73% até meados de janeiro, o que ilustra seu rápido crescimento.

Segundo o trabalho, a primeira onda de covid-19 no Amazonas foi causada pela variante B.1.195. Depois de um pico, sua presença foi caindo gradualmente até ser substituída em maio pela variante B.1.1.28, surgida no Sudeste do Brasil. Ramos dessa linhagens apareceram em municípios do interior, como Manacapuru, Iranduba e Manaquiri, no rio Solimões. A partir dessas cidades o vírus foi sendo disseminado para Manaus e outras localidades. Foi da linhagem B.1.1.28 que surgiu a P.1, na capital do estado.

Por que ela se disseminou

Os pesquisadores da Fiocruz apontam que a trajetória epidemiológica do vírus no Amazonas coincide com a adoção e posterior flexibilização das medidas de distanciamento social. Em abril de 2020, quando as taxas de isolamento superaram os 50%, houve uma queda na circulação do coronavírus. Essa queda, porém, não o suficiente para controlar a pandemia na região.

Entre maio e setembro, o nível de contágio estacionou como se a covid-19 fosse uma doença endêmica, com transmissão comunitária na região. A situação piorou em setembro, quando houve um relaxamento nas medidas restritivas, e a taxa de isolamento social caiu abaixo dos 40%.

“A falta de isolamento social eficaz e outras medidas mitigantes provavelmente aceleraram a transmissão precoce da variante P.1, enquanto sua alta transmissibilidade deu combustível para a rápida insurgência de casos de Sars-CoV-2 [o novo coronavírus] e hospitalizações observadas em Manaus após seu surgimento”, diz um trecho do estudo.

Por que ela é mais contagiosa

Outro estudo também publicado no final de fevereiro de 2021 por pesquisadores do Projeto Cadde, que reúne instituições brasileiras (USP e Unicamp, entre outras) e britânicas (como Imperial College e Universidade de Oxford) aponta que a variante surgida em Manaus tem um poder de transmissão que pode ser até 2,2 vezes maior que as demais.

A P.1 também tem de 25% a 61% de chances de escapar da imunidade adquirida por quem foi infectado anteriormente por outras cepas. Isso explica por que casos de reinfecção foram possíveis numa cidade que já havia sofrido duramente com o vírus durante a primeira onda.

Em outubro, pesquisadores estimaram que 76% da população de Manaus já havia entrado em contato com o novo coronavírus, o que sugeria que a cidade poderia ter alcançado a imunidade coletiva, estágio a partir do qual a transmissão perde força porque a maioria das pessoas adquiriu anticorpos. A segunda onda, em janeiro de 2021, indicou que as pessoas não estavam protegidas da nova cepa.

Os cientistas envolvidos no estudo sequenciaram os genomas de 184 amostras do vírus entre novembro de 2020 e janeiro de 2021. Segundo eles, é possível que a P.1 tenha emergido no início de novembro — e só foi identificada no começo de dezembro.

Sua maior capacidade de transmissão, segundo os pesquisadores, se deve às mutações na proteína S (ou Spike), que tem forma de espinhos e reveste o coronavírus. É essa proteína que faz o vírus grudar nas células humanas. As proteínas são formadas por aminoácidos, e as mutações fazem os aminoácidos trocarem de posição.

Na proteína S da P.1, dez aminoácidos sofreram mutações em comparação com a linhagem que lhe deu origem (B.1.1.28). Mas três dessas mutações são mais importantes, porque elas se ligam com mais força nos receptores presentes nas células humanas que facilitam a entrada do vírus. Essas três mutações também aparecem na variante B.1.351, surgida na África do Sul. Uma delas também foi identificada na variante britânica. Todas são mais transmissíveis.

Os pesquisadores da Fiocruz no Amazonas descobriram que uma pessoa infectada pela P.1 tem uma carga viral dez vezes maior do que doentes que tiveram contato com outras versões do coronavírus. A carga viral é a quantidade de vírus no organismo.

“Se a pessoa tem mais carga viral nas vias aéreas superiores, a tendência é que ela vai expelir mais vírus. E se ela está expelindo mais vírus, a chance de uma pessoa se infectar próxima a ela é maior”, afirmou o pesquisador Felipe Naveca, que liderou o estudo, ao site G1 .

A circulação pelo país

Araraquara, no interior de São Paulo, decidiu fechar o comércio não essencial em fevereiro, depois que o governo paulista identificou 12 casos da P.1 na cidade. Um dos aspectos apontados pelas autoridades sanitárias é que as pessoas infectadas não viajaram a Manaus nem tiveram contatos com quem esteve no Amazonas, o que indica que o vírus já está em circulação na região.

Segundo os pesquisadores do Cadde, a circulação do vírus entre Manaus e as capitais da região Sudeste seguiu o padrão do transporte aéreo. De acordo com o estudo, seis estados que haviam confirmado a presença da P.1 em fevereiro haviam recebido mais de 92 mil passageiros saídos de Manaus apenas em novembro de 2020, segundo dados da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil). Foi o mês em que a cepa surgiu.

A maioria dos passageiros saídos de Manaus no período tiveram São Paulo como destino. Em seguida, os voos mais frequentes foram para outros municípios do Amazonas. Pará, Rondônia e Roraima aparecem na sequência. Todos eles registraram casos da P.1.

A falta de controle do tráfego aéreo no Brasil e de monitoramento com testes de covid-19 de quem chega pelos aeroportos são apontados por especialistas como motivos que contribuíram para a circulação do vírus pelo país. O Reino Unido, por exemplo, obriga desde 15 de fevereiro que todos os viajantes que chegam do Brasil fiquem isolados por dez dias em hotéis — o paciente não identificado infectado com a P.1 entrou no país antes da adoção da medida.

O efeito do ‘tratamento preventivo’

Outro estudo de pesquisadores da Fiocruz Amazonas também divulgado em fevereiro de 2021 mostrou que a taxa de infecção pela covid-19 foi maior em pessoas que aderiram ao falso tratamento preventivo divulgado pelo presidente Jair Bolsonaro e endossado pelo Ministério da Saúde.

Não existem remédios que evitem que uma pessoa se infecte com o novo coronavírus. Desde o começo da pandemia, o governo federal tem divulgado remédios como hidroxicloroquina e ivermectina, mas uma série de estudos demonstrou que eles não funcionam.

A pesquisa da Fiocruz foi feita com 3.046 moradores de Manaus, que passaram por testes de sangue. Entre as pessoas que não tomaram os remédios, a taxa de quem teve contato com o vírus foi de cerca de 26%. Já entre os que usaram os medicamentos, 38% tinham ficado doente.

Em entrevista ao jornal El País, a professora Jaila Dias Borges, da Universidade Federal do Amazonas, e uma das autoras do estudo, disse que a medicação fez as pessoas “baixarem a guarda” e deixarem de se prevenir, ignorando o distanciamento social ou o uso de máscaras.

O epidemiologista Paulo Lotufo, da Universidade de São Paulo, também afirmou ao jornal existir a possibilidade de que pessoas tenham tomado os remédios sem efeito por terem estado em contato com pessoas infectadas, na esperança de se verem protegidas.

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