300 mil: por que a velocidade das mortes dobrou no Brasil
Estêvão Bertoni
24 de março de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h04)Com pandemia em ritmo acelerado, tempo até registrar mais 100 mil mortes caiu pela metade. Especialistas estimam que país possa somar 500 mil óbitos até metade de 2021 caso medidas mais rígidas de isolamento não sejam adotadas
Temas
Compartilhe
Imagem aérea do cemitério da Vila Formosa, em São Paulo
Apenas 76 dias após alcançar a marca de 200 mil mortes pela covid-19, no início de janeiro, o Brasil voltou a contar mais 100 mil vítimas da doença. Na quarta-feira (24), o país contabilizou oficialmente 300.685 óbitos pelo novo coronavírus, segundo o Ministério da Saúde. O número foi de 301.087 no levantamento feito pelo consórcio de veículos de imprensa com base nos dados das secretarias estaduais de Saúde.
O tempo necessário para atingir a marca revela a velocidade e o descontrole da transmissão do vírus no país — apenas entre fevereiro e março de 2021, as mortes semanais dobraram. Da primeira vítima em março de 2020 até os 100 mil mortos em agosto do mesmo ano, foram 145 dias. Das 100 mil às 200 mil em janeiro de 2021, passaram-se mais 152 dias. O Brasil levou metade desse tempo para o número chegar a 300 mil.
Sem vacinas disponíveis em quantidade suficiente, evitando adotar restrições de circulação mais rigorosas, como os lockdowns, e enfrentando o aparecimento de uma variante mais transmissível do coronavírus, o Brasil está, em março, à beira de uma crise humanitária.
Os hospitais estão lotados em quase todo o país, e há registros de mortes de pacientes na fila de espera por leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Na terça-feira (23), o país registrou 3.251 mortes pela covid-19 em 24 horas, segundo o Ministério da Saúde, número recorde desde o início da pandemia.
Por representar uma ameaça global, a OMS (Organização Mundial da Saúde) passou a pedir em todas as entrevistas realizadas em março que o Brasil leve a pandemia a sério. Na segunda-feira (22), o diretor-geral da entidade, Tedros Adhanom, pediu alinhamento de todas as esferas de poder no país para as ações de combate à covid-19.
“O número de casos aumenta, o número de mortes aumenta. O Brasil tem de levar isso a sério, seja o governo, seja o povo”
Mais de um ano após o início da pandemia e sob pressão de aliados, do empresariado, do setor financeiro e de políticos de oposição, o presidente Jair Bolsonaro anunciou na quarta-feira (24) a criação de um comitê de coordenação nacional de combate à crise sanitária. O grupo deve ter encontros semanais para coordenar ações em conjunto com governadores e líderes parlamentares.
O alerta para a situação brasileira já vinha sendo feito por epidemiologistas desde o final de 2020: com o relaxamento das medidas de isolamento social, a reabertura desordenada das atividades econômicas e as festas de fim de ano, como Natal e Ano Novo, o país poderia ter uma explosão de casos.
A situação foi agravada pelo aparecimento de uma variante do coronavírus em Manaus, identificada no começo de 2021. As mutações no vírus são comuns e esperadas. Elas acontecem por causa de falhas na replicação do vírus no organismo. Quanto mais ele circula, maiores as chances de surgirem variantes com vantagens evolutivas, que podem ser mais transmissíveis. Sem o controle da pandemia, o Brasil passou a ser visto como um celeiro de novas variantes.
Para a epidemiologista Ethel Maciel, professora da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo), houve um conjunto de fatores responsável pelo agravamento da pandemia que inclui as aglomerações, as novas variantes, a “ausência quase que completa de qualquer medida de diminuição de circulação” e a falta de coordenação de um política nacional de enfrentamento à doença pelo governo federal.
“Estamos quase no fim de março sem o auxílio emergencial [que parou de ser pago em 31 de dezembro de 2020]. É muito difícil para aqueles que estão passando necessidades básicas ficar sem sair de casa. É uma questão de necessidade humana básica, de alimentação, de fome. Então a pessoa acaba se colocando em risco em virtude de não termos, neste momento, nenhuma ajuda do governo federal”
Para a médica epidemiologista Ana Maria de Brito, que é pesquisadora da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e professora aposentada da Universidade de Pernambuco, o Brasil nunca conseguiu conter o avanço do vírus desde o início da pandemia. “A gente teve meses com um arrefecimento dos casos, mas continuou tendo casos e óbitos”, disse ao Nexo .
Segundo ela, a covid-19 é uma doença que cria um “estoque de infectados” cuja consequência é uma pressão sobre o sistema de saúde. Para reduzir esse estoque, a única maneira é fazer um trabalho de prevenção. “Era exatamente a adoção das medidas não medicamentosas [como isolamento, quarentenas, uso de máscaras], uma vez que a gente não tem vacinas em larga escala, sem necessariamente fazer o que o brasileiro tanto teme que é o lockdown [confinamento rigoroso da população]”, afirmou.
O colapso dos hospitais, de acordo com a pesquisadora, se deveu ao fato de uma superexposição da população mais jovem ao vírus. “Essa população demanda leito hospitalar por mais tempo. Paradoxalmente, um jovem pode evoluir com a mesma gravidade de uma pessoa com mais de 60 anos, mas não morre e fica um tempo maior na UTI”, disse.
Dados do SUS (Sistema Único de Saúde) mostram que, em março, apenas no Estado de São Paulo, 50,8% das internações em UTIs são de pessoas com menos de 60 anos. As mortes, porém, continuam ocorrendo, em sua grande maioria ( 71,5% dos casos ), entre idosos.
Embora o país responda por apenas 2,7% da população mundial, cerca de 10% de todas as vítimas da doença no mundo são brasileiras. O Brasil é superado apenas pelos Estados Unidos, com mais de 545 mil mortos pela doença.
Os americanos, porém, têm conseguido reduzir o número de casos devido a uma mudança de atitude em relação à infecção desde a posse do presidente Joe Biden, no final de janeiro, e uma campanha de vacinação em massa. Já o Brasil segue em caminho contrário ao resto do mundo. Enquanto a pandemia arrefece no exterior, ela explode no país.
Para a pesquisadora Ana Maria de Brito, o Brasil “é o pior país no enfrentamento da pandemia” e negligenciou a negociação de vacinas.
“A negociação era arriscada para a indústria farmacêutica e para os governos. Você estava apostando numa medida que poderia não ocorrer. O Brasil rejeitou todas as chances de fazer um pacto de compra de vacinas e ficamos a ver navios. Somos os últimos da fila”
Segundo ela, do Brics (grupo de cinco grandes países emergentes formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), apenas o Brasil e a África do Sul (que também enfrentou o aparecimento de uma variante do coronavírus mais contagiosa) não desenvolveram as próprias vacinas.
“A gente só não está em situação ainda pior porque contamos com duas forças: o SUS, que mesmo sucateado sustenta essa carga de demanda quase desumana e tem uma capacidade capilarizada de distribuição de vacinas em quase 38 mil postos, e os laboratórios da Fiocruz e do Butantan, pelo esforço dos pesquisadores em forçar o Brasil a assinar acordos com grandes produtores de vacinas”, afirmou.
Embora tenha experiência em campanhas de imunização em massa graças ao Programa Nacional de Imunizações, criado ainda na década de 1970 e responsável por controlar e erradicar doenças endêmicas no país, o Brasil não tem conseguido avançar na vacinação contra a covid-19 por falta de doses. A campanha nacional teve início no país em 18 de janeiro.
Na quarta-feira (24), segundo levantamento do consórcio de veículos de imprensa, apenas 6,32% da população havia recebido a primeira dose do imunizante. A parcela totalmente vacinada era de apenas 2,09%. Os dados disponíveis no site do Ministério da Saúde mostravam ainda 5,4% e 1,7%, respectivamente.
Com uma população de 210 milhões de habitantes, apenas 29 milhões de doses haviam sido distribuídas pelo Ministério da Saúde aos estados até quarta-feira (24) — 83% delas eram da Coronavac, vacina disponível no país devido à iniciativa do governo de São Paulo de comprar o imunizante do laboratório chinês Sinovac, e produzi-lo em parceria com o Instituto Butantan. A previsão do governo federal é disponibilizar 562 milhões de doses até o final de 2021, mas o cronograma vem sofrendo uma série de atrasos.
Em entrevista na quarta-feira (24), o novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, afirmou que o governo tem como meta vacinar cerca de 1 milhão de pessoas por dia. A epidemiologista Ethel Maciel estima que o ritmo tenha que ser ainda maior: 2,5 milhões por dia.
“Para a gente atingir uma imunidade coletiva e pensando na emergência dessas novas variantes, que são de preocupação, a gente precisa acelerar essa vacinação”, disse. Como o alcance da campanha ainda é pequeno, ela afirma que a imunização precisa ser combinada com medidas de restrição devido à aceleração da transmissão.
Para a pesquisadora Ana Maria de Brito, o Brasil deveria estar vacinando “pelo menos dez vezes mais” do que está vacinando por dia. “Deveria estar vacinando como os Estados Unidos”, disse. Até terça-feira (23), os Estados Unidos, que iniciaram a imunização ainda em dezembro de 2020, tinham aplicado 128 milhões de doses, o que seria suficiente para vacinar mais da metade da população brasileira com uma dose.
O neurocientista Miguel Nicolelis, que coordenou o Comitê Científico do Consórcio Nordeste para a covid-19, afirmou em entrevista ao jornal O Globo na segunda-feira (22) que o Brasil deve alcançar 500 mil mortes em julho caso medidas restritivas não fossem adotadas imediatamente. Ele defende um lockdown nacional de 21 dias .
Para a professora Ethel Maciel, o cenário é possível, “principalmente se a gente não conseguir ganhar uma escala maior de vacinação no Brasil”. “A maioria das medidas de restrição foram adotadas na semana passada [de 15 de março] nos estados. A gente vai precisar acompanhar a redução no número de casos novos por dia para que possa observar uma mudança nessa curva que está muito ascendente, com uma aceleração muito rápida”, disse.
Devido ao tempo de incubação do vírus no organismo, que é de cerca de 14 dias, as medidas restritivas só começam a ter efeito duas semanas depois de serem adotadas. Por isso, os números de casos e mortes devem subir ainda antes que comecem a cair.
Outra preocupação está no fato de as medidas não serem duras a ponto de causar grande impacto. “Talvez essas medidas não sejam suficientes apesar de alguns estados já estarem completando uma semana de restrição. Nós ainda não estamos vendo o número de casos novos diários diminuindo”, disse a professora.
Um boletim do Observatório Covid-19 da Fiocruz divulgado na terça-feira (23) diz ser necessária a adoção de medidas mais rígidas para bloquear a transmissão do vírus nas regiões em alerta crítico. O documento defende o fechamento das atividades não-essenciais por 14 dias para reduzir em 40% a transmissão, e o uso obrigatório de máscaras por pelo menos 80% da população.
Para a pesquisadora Ana Maria de Brito, ainda dá tempo de reverter um quadro mais grave como o previsto por Nicolelis caso o país consiga mais vacinas. “Eu acredito no apoio internacional e que os grandes países, quando vacinarem todas as suas populações, possam fazer doações num acordo de cooperação com a OMS”, afirmou.
Segundo ela, a pandemia no Brasil ameaça toda a América do Sul e mais diretamente os nove vizinhos que fazem fronteira com o país. Isso forçaria uma atuação dos órgãos internacionais. A ideia de pedir ajuda externa chegou a ser cogitada pelos próprios governadores. “O Brasil tem conexões internacionais com todos os países, faz comércio com a maioria dos grandes centros. A minha expectativa otimista é que o mundo salve o Brasil”, afirmou.
Colaboraram Lucas Gomes e Gabriel Maia
NEWSLETTER GRATUITA
Enviada à noite de segunda a sexta-feira com os fatos mais importantes do dia
Gráficos
O melhor em dados e gráficos selecionados por nosso time de infografia para você
Destaques
Navegue por temas