Expresso

Os EUA entre o nacionalismo e a diplomacia da vacina

Redator

30 de maio de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h09)

O ‘Nexo’ ouviu pesquisadores das áreas epidemiológica, diplomática e econômica para entender os fatores em jogo no anúncio de Biden sobre doação de imunizantes

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FOTO: KEVIN LAMARQUE/REUTERS – 12.MAI.2021

Joe Biden gesticula e fala em frente a microfone

O presidente americano Joe Biden discursa na Casa Branca sobre programa de vacinação dos EUA

O presidente americano Joe Biden anunciou, no dia 17 de maio, que pela primeira vez os EUA doariam a outros países vacinas contra a covid-19 já aprovadas para uso doméstico. São 20 milhões de doses dos imunizantes da Pfizer, Moderna e Johnson & Johnson que serão distribuídas em cooperação com o consórcio internacional Covax Facility, da OMS (Organização Mundial da Saúde).

Essa remessa se soma a outra doação, anunciada em abril, de 60 milhões de doses da vacina AstraZeneca — cujo uso ainda não foi liberado pelas autoridades sanitárias dos Estados Unidos. “Nossa nação será o arsenal de vacinas para o mundo”, disse Biden.

A decisão responde à pressão crescente de organizações multilaterais por uma distribuição mais igualitária dos imunizantes entre os países. O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, há meses critica o nacionalismo de países ricos, que tiveram vantagem nas negociações com farmacêuticas pela compra de vacinas. Os EUA asseguraram uma quantidade de doses três vezes maior do que o necessário para vacinar toda a sua população.

“Os países de alta renda respondem por 15% da população mundial, mas têm 45% das vacinas, e os de rendas média e baixa somam quase metade da população, mas recebem apenas 17% das vacinas mundiais, então a lacuna é realmente enorme”

Tedros Adhanom

diretor-geral da OMS, em pronunciamento do dia 17 de maio

Nesse contexto, as 80 milhões de doses doadas pelos EUA foram vistas por ativistas e pesquisadores da área da saúde como uma primeira contribuição importante, mas ainda insuficiente . Em discurso do dia 24 de maio, Adhanom disse que 250 milhões de doses serão necessárias para que o Covax possa vacinar ao menos 10% da população de todos os países do mundo até setembro.

11 bilhões

de doses serão necessárias para vacinar 70% da população mundial e alcançar a imunidade coletiva, segundo estimativa da Universidade de Duke, nos EUA

Os EUA são o segundo maior fabricante de vacinas contra a covid-19, mas até maio não tinham compartilhado nem 1% das doses produzidas no país com o resto do mundo — em contraste com China, Índia e Rússia, que se tornaram importantes fornecedores do produto a nível global, exportando grande parte da sua produção.

Quase 40% da população americana já recebeu duas doses da vacina, e o presidente Joe Biden espera chegar a 70% de cobertura vacinal até 4 de julho, dia da independência dos EUA. O país liberou a vacinação de pessoas fora dos grupos de risco, inclusive para crianças entre 12 e 15 anos, e vem relaxando medidas de proteção contra o novo coronavírus, como o uso de máscaras em ambientes abertos.

Outros lugares do mundo, como Brasil e Índia , têm registrado em 2021 os maiores índices de mortes por covid-19 desde o começo da pandemia. Segundo a OMS, o número global de mortes pela doença registradas neste ano deve superar em junho o total de 2020.

O Nexo ouviu pesquisadores das áreas econômica, diplomática e epidemiológica sobre os principais fatores que influenciam a atuação dos EUA na cooperação internacional pela imunização.

O risco de uma pandemia prolongada

Um fracasso na campanha internacional de imunização contra a covid-19 representaria o prolongamento da crise sanitária global. Esse é o alerta da OMS para países ricos mais avançados na vacinação: “A pandemia não vai terminar até que tenha terminado em todos os lugares ”, disse Tedros Adhanom.

A transmissão desenfreada do vírus em lugares vulneráveis aumenta o risco de surgimento de novas variantes , mais contagiosas e possivelmente mais resistentes à vacinação — problema que pode ameaçar também a imunidade de países ricos.

Para a médica epidemiologista Ana Maria de Brito, que é pesquisadora da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e professora aposentada da Universidade de Pernambuco, priorizar só a vacinação nos EUA “não garante um controle sanitário do país num mundo em que vivemos com setores conectados internacionalmente, como comércio e turismo”.

Brito ecoa o pedido da OMS para que se vacinem primeiro os grupos mais vulneráveis à doença de todos os países, e que só depois se ampliem os esforços de imunização a outros grupos.

FOTO: LUCY NICHOLSON/REUTERS – 14.MAI.2021

Mães e adolescentes fazem fila em dupla na calçada

Mães acompanham filhos adolescentes de 12 a 15 anos em fila de vacinação na cidade de Pasadena, nos EUA

Por outro lado, a decisão dos EUA de liberar a vacinação para praticamente toda a população faz parte de um plano de comunicação contra a hesitação vacinal, afirma Adriano Massuda, médico sanitarista e professor da FGV (Fundação Getulio Vargas).

Hoje, um dos maiores desafios que o país enfrenta na sua campanha doméstica de imunização é o convencimento dos americanos que ainda relutam em tomar a vacina. A oferta do produto já supera a demanda em alguns estados. “Os governos precisam lançar mão de várias iniciativas de ênfase da necessidade da vacinação”, diz Massuda. “Entre essas iniciativas, inclui-se a vacinação de grupos não prioritários, como estratégia de motivação”.

Os interesses diplomáticos em jogo

Joe Biden assumiu a Presidência dos EUA com a promessa de retomar a tradição americana de liderança na diplomacia internacional. Ele demarcou um contraste com seu antecessor, o republicano Donald Trump, que abandonou acordos multilaterais e ameaçou retirar o país da OMS durante a pandemia.

Em seu primeiro discurso sobre política externa na Casa Branca, Biden prometeu fazer frente ao autoritarismo das potências rivais dos EUA, Rússia e China. Os dois países saíram na frente nos esforços internacionais de imunização contra a covid-19, e há meses exportam milhões de imunizantes a outras nações. A chamada “diplomacia da vacina” é vista como uma oportunidade de expandir a influência a nível global.

Segundo Carolina Moehlecke, professora e pesquisadora de relações internacionais na FGV, o autoritarismo dos governos russo e chinês explica por que esses países conseguiram tomar a decisão impopular de investir na exportação antes de vacinar suas próprias populações.

Nos EUA, Biden corria mais risco político como presidente recém-eleito de uma nação polarizada, acredita a professora. Ele precisou primeiro alcançar um ponto mais avançado na imunização doméstica, e agora tenta correr atrás no jogo diplomático. “É importante notar a ênfase que ele dá na doação [das 80 milhões de doses]”, disse Moehlecke. “Porque até agora o grande fornecedor de vacinas do mundo é a China. O Biden está sinalizando: não estamos só exportando, estamos realmente doando”.

Ao anunciar a doação das 20 milhões de doses já aprovadas para uso doméstico, o presidente americano afirmou que os EUA não usarão suas vacinas para “ garantir favores de outros países ”, como China e Rússia estariam fazendo.

Na análise de Paulo Buss, ex-presidente e atual coordenador do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz, China e EUA “têm a mesma perspectiva: [a diplomacia da vacina] abre espaço para o comércio”. “Ninguém é ingênuo na arena internacional”, disse ao Nexo .

A importância da vacina para a economia

Com o avanço das vacinações, o relaxamento de medidas de controle da covid-19 e a reabertura do comércio, a economia dos EUA mostra sinais de forte recuperação em 2021. A desigualdade na distribuição dos imunizantes entre os países, no entanto, é um obstáculo à retomada econômica mundial, segundo relatório de maio da ONU.

Esse problema também interfere no comércio exterior dos EUA. “Os países mais pobres exportam produtos tipo commodity e importam produtos industrializados americanos”, disse Leonardo Trevisan, professor de geoeconomia internacional na ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing). “Essas relações de troca são muito importantes e os EUA têm consciência disso”.

Contudo, esse fator por si só não é suficiente para estimular uma maior cooperação americana na vacinação internacional, na visão de Simão Silber, presidente do conselho curador da Fipe (Fundação de Pesquisas Econômicas). “O EUA é um país tão grande que, se o mundo desmoronar, ele sofre um pouquinho, mas não muita coisa. Eles são muito autossuficientes”, disse ao Nexo .

Do outro lado, existe também a pressão da indústria farmacêutica americana, que espera lucrar com a venda de vacinas. O setor foi prejudicado quando Biden tomou a decisão histórica de apoiar a quebra de patente dos imunizantes em negociações na OMC (Organização Mundial do Comércio).

Trevisan enxerga esse gesto como uma “jogada de mestre” – um aceno diplomático importante, mas vazio. “Biden quis chegar atrasado na disputa pela hegemonia internacional e sentar na janelinha”, afirma o professor. Na sua análise, a quebra de patente é um passo muito pequeno em relação aos obstáculos logísticos que ainda precisam ser superados para que outros países consigam produzir as suas próprias vacinas.

Para o segundo semestre de 2021, com o avanço da imunização nos EUA e na Europa, Trevisan antecipa uma forte disputa pelo mercado dos imunizantes. “Nós temos na verdade três grandes produtores: China, Índia e EUA. Aparentemente, a indústria americana, quando jogar toda a sua força, vai sair na frente”.

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