Expresso

Como Bolsonaro usou o TCU para justificar seu negacionismo

Estêvão Bertoni

09 de junho de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h10)

Episódio envolve amizade do presidente com pai de um auditor do tribunal, que elaborou texto para tentar legitimar tese de que número de mortes por covid no Brasil está inflado

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FOTO: ALAN SANTOS/PR – 9.JUN.2021

Imagem mostra o presidente Jair Bolsonaro segurando um microfone durante discurso. Atrás dele, há um telão com a imagem da bandeira do Brasil

O presidente Jair Bolsonaro, durante evento em igreja de Anápolis, em Goiás

Com o Brasil se aproximando de meio milhão de mortos pela covid-19, o presidente Jair Bolsonaro tentou usar o TCU (Tribunal de Contas da União), órgão ligado ao Congresso, para justificar seu discurso negacionista de que o número de vidas perdidas no país é menor do que o divulgado oficialmente.

Bolsonaro está pressionado pela CPI da Covid no Senado, que investiga ações e omissões do governo na pandemia. O Brasil figura entre os países com mais casos e mortes por covid-19 no mundo e executa uma campanha de imunização em ritmo lento, por falta de doses. Membros da comissão dizem já ter provas para pedir a responsabilização de autoridades por crimes sanitários e contra a vida.

Neste texto, o Nexo mostra como o presidente tenta criar uma falsa narrativa sobre a pandemia e explica como de fato funcionam os mecanismos citados pelo presidente na tentativa de emplacar sua tese sem provas.

Como surgiu a mentira

Na manhã de segunda-feira (7), ao conversar com apoiadores na porta do Palácio do Alvorada, Bolsonaro afirmou que tinha uma informação em “primeira mão” de um “tal de Tribunal de Contas da União”. Segundo ele, o TCU havia questionado o número de mortes por covid no Brasil em 2020.

“O relatório final não é conclusivo, mas em torno de 50% dos óbitos por covid ano passado não foram por covid, segundo o Tribunal de Contas da União”, disse. “Esse relatório saiu há alguns dias. Lógico que a imprensa não vai divulgar. Eu tenho três jornalistas que eu converso, não vou falar o nome deles, que são pessoas sérias, né. E já passei para eles. E devo divulgar hoje à tarde. E como é do Tribunal de Contas da União, ninguém queira me criticar por causa disso”, completou.

O portal R7 publicou logo depois um texto dizendo que “apenas quatro em cada dez óbitos registrados por complicações da doença seriam efetivamente resultado da contaminação do vírus”. O site afirmou que o dado constava do documento “citado por Bolsonaro”, que se tratava de um trecho do relatório do TCU e fora obtido por meio de “fontes no Planalto”.

Os mesmos dados passaram a circular nas redes sociais como parte de um documento apócrifo intitulado “Da possível supernotificação de óbitos causados por covid-19 no Brasil”. No mesmo dia, o TCU desmentiu as informações divulgadas pelo presidente e por jornais.

“O TCU esclarece que não há informações em relatórios do tribunal que apontem que ‘em torno de 50% dos óbitos por covid no ano passado não foram por covid’, conforme afirmação do presidente Jair Bolsonaro. O TCU reforça que não é o autor de documento que circula na imprensa e nas redes sociais”

Tribunal de Contas da União

em nota divulgada na segunda-feira (7)

A fonte dos dados falsos

Na mesma nota em que desmentia Bolsonaro, o TCU também afirmou que o conteúdo apócrifo era uma “análise pessoal de um servidor do tribunal compartilhada para discussão e não consta de quaisquer processos oficiais desta Casa, seja como informações de suporte, relatório de auditoria ou manifestação do tribunal”. “Ressalta-se, ainda, que as questões veiculadas no referido documento não encontram respaldo em nenhuma fiscalização do TCU”, dizia o órgão.

O autor do documento foi identificado e afastado . Trata-se do auditor Alexandre Figueiredo Costa e Silva Marques , que confessou aos superiores ter elaborado o relatório. Nas informações encaminhadas à corregedoria do TCU, consta que o servidor disse ter comentado sobre os dados com o pai , militar que é amigo pessoal de Bolsonaro. O militar teria, então, enviado o texto ao presidente.

O pai de Alexandre é o coronel reformado do Exército Ricardo Silva Marques. Ele se formou na Academia Militar das Agulhas Negras em 1977, na mesma turma de Bolsonaro. Em 2019, foi nomeado para um cargo na gerência executiva de Inteligência e Segurança Corporativa da Petrobras.

No mesmo ano, Alexandre foi indicado para uma diretoria no BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) pelo presidente do banco, Gustavo Montezano, que é amigo dos filhos de Bolsonaro. A indicação, porém, foi barrada pelos ministros do TCU por poder se configurar conflito de interesses, já que o auditor passaria a atuar numa instituição financeira que é fiscalizada pelo próprio tribunal.

Na quarta-feira (9), os senadores decidiram convocar o auditor do TCU para depor na CPI da Covid. O depoimento ainda não tem data.

A insistência de Bolsonaro

Depois de ser desmentido pelo TCU, o presidente admitiu o erro na terça-feira (8), mas insistiu na suposta supernotificação das mortes por covid-19. Novamente a apoiadores em frente ao Palácio do Alvorada, Bolsonaro afirmou haver “indícios fortíssimos” da irregularidade e citou como provas “vídeos do WhatsApp”.

“A questão do equívoco, eu e o TCU de ontem. O TCU está certo”, disse. Segundo ele, seu erro foi ter falado em “tabela” do tribunal apontando a supernotificação, enquanto o certo seria “acordão”. Ele citou, então, dois acórdãos do TCU que citam risco de os dados serem inflados, mas não diz que isso efetivamente aconteceu. Acórdãos são decisões finais de tribunais superiores que servem de referência para casos semelhantes.

“É um indício fortíssimo, vocês devem ter visto muitos vídeos no WhatsApp, pessoas falando ‘meu pai, meu avô, meu tio, meu irmão não morreu de covid’. E botaram covid por quê? Poderia estar havendo, como o próprio TCU previu — não tabela, em acórdão — que isso ia acontecer. Acho que agora está justificado o que foi falado ontem, que a gente pode errar. Eu não tenho compromisso com o erro, não tem problema nenhum”, afirmou.

Como ocorrem os repasses

No final de maio de 2020, o próprio Bolsonaro e ministros do governo — como Paulo Guedes (Economia) — assinaram a lei complementar nº 173 , que estabelece o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus. Um dos artigos da lei prevê um auxílio financeiro a estados e municípios no valor de R$ 60 bilhões.

O dinheiro foi pago em quatro parcelas mensais, iguais, para os governos mitigarem os efeitos da pandemia. Parte do valor, de R$ 10 bilhões, deveria ser direcionado a ações de saúde e assistência social. No caso específico dos estados, 60% desses recursos seriam direcionados de acordo com a população e 40% conforme a taxa de incidência de covid-19 divulgada pelo Ministério da Saúde na data de publicação da lei (maio) e nos três meses seguintes (junho, julho e agosto).

A insistência de Bolsonaro na supernotificação de mortes não se sustenta porque o cálculo era baseado em casos — e não em óbitos. Um parecer do Senado sobre o critério de distribuição de recursos diz que a taxa de incidência “mede o número de novos casos por população e serve como indicador da capacidade do sistema de saúde local acolher os enfermos da covid-19”.

“Supostamente, quando a taxa de incidência é muito alta é mais provável que o sistema de saúde colapse, levando à falta de leitos, respiradores e demais equipamentos. Esses são os locais onde devemos atuar com mais presteza. Não podemos deixar que profissionais de saúde tenham de escolher os que serão atendidos, e os que serão deixados à própria sorte, por falta de estrutura de atendimento”, afirma o documento do Senado.

A taxa também é calculada pelo Ministério da Saúde, que pode conferir os dados e identificar possíveis problemas. Bolsonaro tinha o poder de vetar o trecho da lei, caso não concordasse com o critério. Ele não vetou.

O que foi gasto na pandemia

A divisão de recursos com base na incidência é uma parte muito pequena do que foi gasto pelo governo federal durante a pandemia. Em boletim publicado em março de 2021 pela Rede de Pesquisa Solidária, os pesquisadores Ursula Dias Peres e Fábio Pereira dos Santos identificaram que a União gastou cerca de R$ 600 bilhões para o enfrentamento à pandemia, incluindo medidas sanitárias e econômicas.

“Em 2020, foram destinados R$ 322 bilhões para transferências às pessoas [na forma de auxílio emergencial], R$ 79,2 bilhões em auxílio a estados e municípios, R$ 24,5 bilhões para aquisição de vacinas, somando cerca de R$ 600 bilhões em gastos federais autorizados para enfrentamento à pandemia. Essas medidas, porém, foram executadas sem qualquer coordenação nacional efetiva”, diz o estudo.

O auxílio a estados e municípios superou os R$ 60 bilhões previstos na lei de 2020 porque novos repasses foram decididos após maio. O TCU disse em nota não ter encontrado irregularidades nos repasses que seguiram critérios de incidência de covid.

O que dizem os acórdãos do TCU

Bolsonaro citou dois acórdãos do TCU para dizer que o tribunal previu que os estados inflariam os números de mortos para receber mais recursos. Ele cita os acórdãos 2026/2020, de agosto de 2020, e 2817/2020, de outubro do mesmo ano. No primeiro documento, consta:

“Acerca da distribuição dos recursos pela da taxa de incidência da doença, ainda que legítimo e bastante razoável, tal critério apresenta o risco moral de incentivar a conduta indesejável de supernotificação do número de casos da doença, visando à maior obtenção de recursos, o que, além de não se coadunar com o arcabouço legal, pode acarretar consequências negativas à condução das políticas de enfrentamento à pandemia”

TCU

em acórdão de 2020

Já o segundo documento propõe que o Ministério da Saúde avalie os dados recebidos para evitar o problema:

“Utilizar a incidência de covid-19 como critério para transferência de recursos, com base em dados declarados pelas Secretarias Estaduais de Saúde, pode incentivar a supernotificação do número de casos da doença, devendo, na medida do possível, serem confirmados os dados apresentados pelos entes subnacionais”

TCU

em acórdão de 2020

Para Ursula Peres, que é professora no curso de gestão de políticas públicas da EACH (Escola de Artes, Ciências e Humanidades) da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole, o que os acórdãos apontam é que os critérios adotados para a distribuição de recursos “não são bons”.

“A gente também critica o critério como um todo, porque não foi feito em função da perda de arrecadação [dos estados e municípios] ou de uma análise de quantos leitos existem ou são necessários, que ajudassem a dar conta de todas as políticas públicas. Foi um critério muito mais estático que errou mais do que acertou, porque alguns estados receberam até mais do que perderam [em arrecadação de ICMS] e outros perderam mais do que receberam”, disse, ao Nexo .

Para ela, o fato de o TCU alertar para os riscos de supernotificação não significa que o problema iria acontecer ou que acabou acontecendo.

“Sinceramente, sendo um gestor que está enfrentando uma pandemia, tem que ser muito tresloucado para achar que é legal que morra mais gente porque assim ganha mais dinheiro, sendo que [o gestor] vai ter que usar o recurso e comprovar o uso e a auditoria do TCU está em cima, assim como a do TCE [Tribunal de Contas do Estado]. Ninguém é moleque, né? Essa conversa toda é completamente louca”, disse.

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