A notícia-crime no Supremo. E a reação de Bolsonaro à crise
Isabela Cruz
28 de junho de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h12)Senadores pedem investigação do presidente por prevaricação, mas avanço depende de Procurador-Geral. Resposta do Planalto ao caso vai de ataques a versão de que mandatário não tem ‘como saber tudo’
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O presidente Jair Bolsonaro
Senadores enviaram na segunda-feira (28) uma notícia-crime ao Supremo Tribunal Federal em que pedem que Jair Bolsonaro seja investigado por suspeita de prevaricação . A iniciativa se baseia nos relatos dos irmãos Miranda à CPI da Covid, segundo os quais o presidente foi alertado sobre irregularidades no caso Covaxin.
A investida judicial vem se somar às pressões da comissão parlamentar e de manifestações de rua pelo impeachment. Bolsonaro, por sua vez, afirmou na segunda (28) que “ não tem como saber tudo o que acontece” nos 22 ministérios do governo, num tom menos elevado que aquele que marcou os dias anteriores, com ataques a jornalistas que fizeram questionamentos sobre o tema e ameaças aos irmãos denunciantes. Já na terça-feira (29), o Ministério da Saúde decidiu suspender a compra da Covaxin até que o caso se esclareça.
Neste texto, o Nexo explica o que é prevaricação, mostra quais os indícios que ligam Bolsonaro a esse crime, lista os próximos passos do caso Covaxin no Supremo e relata como o presidente vem reagindo à crise.
Uma notícia-crime é um comunicado de crime feito às autoridades, que, a partir dos indícios apresentados, decidem se uma investigação é necessária ou não. Durante a pandemia, várias notícias-crime contra Bolsonaro foram arquivadas. Para que alguma delas prospere e vire uma investigação, é necessário um pedido ao Supremo do procurador-geral da República, Augusto Aras.
A notícia-crime protocolada no Supremo pelos senadores Randolfe Rodrigues (Rede-AP), vice-presidente da CPI da Covid, Fabiano Contarato (Rede-ES) e Jorge Kajuru (Podemos-GO) é baseada nos depoimentos dos irmãos Luis Miranda, deputado federal pelo DEM do Distrito Federal, e Luis Ricardo Miranda, servidor da Saúde e chefe do departamento de importações do Ministério da Saúde.
À CPI o deputado confirmou na sexta-feira (25) o que vinha dizendo em entrevistas anteriores: numa reunião em 20 de março de 2021 no Palácio da Alvorada, residência oficial da Presidência, ele e seu irmão alertaram Bolsonaro sobre irregularidades nos contratos para a compra da Covaxin, imunizante indiano. Eles suspeitam de superfaturamento e favorecimento indevido à empresa contratada.
O parlamentar acrescentou no depoimento à comissão que Bolsonaro reagiu da seguinte maneira: “é mais um rolo do Ricardo Barros ”, em referência ao líder do governo na Câmara, deputado federal pelo PP do Paraná. O presidente teria ainda dito que informaria a Polícia Federal sobre as irregularidades.
A declaração é importante porque, se confirmada, revela que o presidente tinha indícios de crime fortes o suficiente – inclusive com o nome do suposto articulador do esquema – para acionar as autoridades responsáveis por investigar irregularidades. A Polícia Federal não tinha nenhum inquérito aberto sobre o caso antes que as denúncias dos irmãos Miranda se tornassem públicas.
“Que presidente é esse que tem medo de pressão de quem está fazendo o errado? De quem desvia dinheiro público de gente morrendo por causa dessa p… de covid”
Os senadores governistas Marcos Rogério (DEM-RO) e Jorginho Mello (PL-SC) afirmaram à CPI na quinta-feira (24), após reunião com o ministro Onyx Lorenzoni, chefe da Secretaria-Geral da Presidência, que Bolsonaro encaminhou as suspeitas ao general Eduardo Pazuello, que à época estava se despedindo do Ministério da Saúde, na prática dividindo o cargo com o recém-nomeado Marcelo Queiroga. Pazuello teria então promovido uma apuração interna, sem encontrar qualquer problema. Tampouco foram apresentadas provas dessa apuração.
Em vídeos que gravou para integrantes do Ministério da Saúde e revelou apenas após deixar a pasta, Pazuello afirma que, enquanto ministro, foi pressionado por uma “liderança política” para atender a uma série de demandas orçamentárias, sem esclarecer a quem se referia. O general também disse que “todos querem um pixulé no fim do ano”. Pixulé é termo que costuma ser utilizado como sinônimo de propina.
Pelo Código Penal, o crime de prevaricação se configura quando um agente público “ retarda ou deixa de praticar , indevidamente, ato de ofício”, para “satisfazer interesse ou sentimento pessoal”. Isto é, quando alguém da máquina pública deixa de realizar suas obrigações funcionais, por um motivo pessoal. A pena é de detenção de três meses a um ano, mais multa.
Os senadores argumentam que Bolsonaro, seja porque participou do esquema, seja porque quis proteger aliados, deixou, indevidamente, de dar encaminhamento à denúncia que recebeu dos irmãos Miranda, violando seus deveres como chefe da administração federal e, portanto, prevaricando.
“Tudo indica que o sr. presidente da República, efetiva e deliberadamente, optou por não investigar o suposto esquema de corrupção levado a seu conhecimento pelo deputado federal Luis Miranda e por seu irmão”
Para que o crime de prevaricação se configure, é desnecessário provar se houve ou não problemas no contrato da Covaxin, ou mesmo prejuízo aos cofres públicos. Basta que se prove que, sabendo de indícios de crime, o presidente nada fez, por interesse ou sentimento pessoal.
“Não é necessário haver prejuízo material, imediato e concreto. O prejuízo sempre diz respeito à probidade, ou seja, aos deveres do cargo. O crime está no perigo gerado ao bom funcionamento da administração pública, ainda que fique só no perigo ”, afirmou ao Nexo a professora de direito penal Raquel Scalcon, da Fundação Getulio Vargas.
O contrato para aquisição da Covaxin, assinado com a Precisa Medicamentos, previa a entrega de 20 milhões de doses da vacina a um custo total de cerca de R$ 1,6 bilhão. Entre outras particularidades do negócio, foram as doses mais caras encomendadas pelo Brasil, a negociação ocorreu em tempo recorde, e a Precisa e outras empresas do mesmo sócio têm histórico de irregularidades nos contratos com o Ministério da Saúde.
A entrega dos imunizantes deveria ocorrer “de forma escalonada entre os meses de março a maio” de 2021, segundo informou o Ministério da Saúde à época. Mas, até junho, nenhuma dose chegou. Com isso, apesar do empenho (reserva) do montante acordado no Orçamento federal, não houve pagamentos à Precisa por parte do governo.
Com a suspensão do contrato pelo Ministério da Saúde, o negócio fica congelado. Integrantes do governo ainda avaliam a possibilidade de cancelar a compra por completo.
Quando recebem comunicações de crime contra o presidente, normalmente os ministros encaminham a notícia à Procuradoria-Geral da República, para que o órgão informe se deseja abrir inquérito ou não.
Se o procurador-geral defender a abertura, o ministro relator do caso decide se atende ou não ao pedido. Se o procurador-geral for contra a investigação, a notícia-crime é arquivada, já que, pelo sistema estabelecido pela Constituição, o próprio Supremo não pode abrir inquéritos sem o pedido do órgão acusatório (a Procuradoria-Geral).
A gestão de Augusto Aras à frente da Procuradoria-Geral tem sido marcada por uma blindagem do presidente. Desde a posse até meados de março de 2021, o órgão recebeu 93 comunicações de supostos crimes de Bolsonaro, mas pediu ao Supremo a abertura de apenas um inquérito contra ele. A investigação apura suspeita de interferência na Polícia Federal e mira também o ex-ministro Sergio Moro, responsável pelas acusações.
Nesse contexto, o ministro Alexandre de Moraes, em maio de 2021, decidiu abrir inquérito a partir de um pedido da Polícia Federal, sem a participação do procurador-geral.
No caso da notícia-crime por suspeita de prevaricação, a relatora sorteada foi a ministra Rosa Weber. Até a noite de segunda-feira (28), não havia manifestação de Augusto Aras. Ainda que um inquérito seja aberto sem a Procuradoria-Geral da República, o que seria excepcional, uma denúncia (passo necessário para que um investigado se torne réu e responda a processo) depende necessariamente da iniciativa de Aras.
Além da prevaricação, os senadores veem a possibilidade de a omissão de Bolsonaro configurar crime de responsabilidade, que fundamentam processos de impeachment no Congresso. Pela Lei do Impeachment, é crime de responsabilidade “ deixar de tomar , nos prazos fixados, as providências determinadas por lei”. Para um pedido de impeachment andar, é preciso aval do presidente da Câmara– no caso, Arthur Lira (PP-AL), do mesmo partido de Ricardo Barros. Ambos são do centrão, grupo de parlamentares que atualmente apoia Bolsonaro.
Bolsonaro tem insistido na tese de que o governo não pode ser acusado de corrupção, uma vez que o pagamento pela Covaxin, negociado com a intermediária Precisa Medicamentos, não chegou a ser desembolsado pelo governo. Ele usou esse argumento, por exemplo, na sexta-feira (25), quando insultou uma jornalista que o questionou sobre o caso. Na segunda-feira (28), voltou a falar no tema.
“Inventaram a corrupção virtual, né? Não recebemos uma dose, não pagamos um centavo”
Sobre os crimes de corrupção, Scalcon destacou ao Nexo que eles se configuram a partir do momento em que o funcionário público solicita vantagem indevida a um particular ou aceita uma promessa de que receberá uma vantagem indevida. A não realização de pagamentos, portanto, não é imprescindível para que haja crime.
Desde que os irmãos Miranda deram entrevistas falando do envolvimento de Bolsonaro no caso Covaxin, o governo federal tem defendido que quem pode ter cometido prevaricação é o servidor Luis Ricardo Miranda, que não teria informado seu chefe imediato das suspeitas de irregularidades. Bolsonaro quer que o servidor responda a um inquérito da Polícia Federal e a um processo administrativo disciplinar, dentro do próprio Ministério da Saúde.
O servidor alega que ele e seu irmão fizeram a comunicação diretamente ao presidente da República, num contexto em que a pressão para executar um contrato com indícios de irregularidades vinha dos cargos superiores no ministério.
Além da acusação de prevaricação, Onyx Lorenzoni, secretário-geral da Presidência, afirmou na quarta-feira (23) que Bolsonaro pediu à PF uma investigação contra os irmãos Miranda por indícios de denunciação caluniosa (dar causa à instauração de investigação contra alguém, sabendo que a pessoa é inocente) e fraude processual (por suposta adulteração dos documentos apresentados).
“Senhor Luís Miranda, Deus está vendo. Mas o senhor também vai pagar na Justiça tudo o que fez hoje. Que Deus tenha pena do senhor ”
O deputado Miranda chegou ao depoimento da CPI vestindo um colete à prova de balas e dizendo estar recebendo diversas ameaças. Para ele, a declaração de Onyx incitou os apoiadores de Bolsonaro contra ele, ao dizer que o deputado “traiu o Brasil” e “se junta a todo mal que há na política brasileira”.
Miranda pediu que a CPI encaminhasse um pedido de investigação à Procuradoria-Geral da República para apurar se as ameaças de Onyx foram feitas a pedido de Bolsonaro .
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