As suspeitas de propina nas vacinas do governo Bolsonaro
Fernanda Boldrin
30 de junho de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h12)Jornal Folha de S.Paulo e revista Crusoé trazem relatos de pedidos e ofertas de suborno em meio a negócios federais envolvendo imunizantes contra a covid
O presidente Jair Bolsonaro junto com Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara
O jornal Folha de S.Paulo e a revista Crusoé publicaram reportagens na noite de terça-feira (29) que levantam suspeitas de oferecimento de propina em negócios ligados à compra de vacinas contra a covid-19 pelo governo de Jair Bolsonaro. Ambos os casos envolvem direta ou indiretamente o nome do deputado Ricardo Barros (PP-PR), líder do Palácio do Planalto na Câmara e integrante do centrão, grupo que dá sustentação ao presidente no Congresso.
As novas suspeitas se somam a indícios já sob investigação do Ministério Público Federal, do Tribunal de Contas da União e da CPI da Covid no Senado. São indícios que apontam para possíveis irregularidades em contratos do governo com empresas intermediárias em que os altos preços por dose de imunizante chamam atenção. A crise em torno de Bolsonaro se agrava num momento em que a oposição ganha força nas ruas com pedidos de impeachment.
Neste texto, o Nexo explica as suspeitas de propina reveladas pelo jornal Folha de S.Paulo e pela revista Crusoé e mostra como é a relação de Ricardo Barros e seu partido, o PP (Progressistas), com Bolsonaro e seu governo.
O representante de uma empresa vendedora de vacinas recebeu pedido de propina para fechar contrato com o Ministério da Saúde, conforme revelou na terça-feira (29) o jornal Folha de S.Paulo. Luiz Paulo Dominguetti Pereira, que se apresenta como representante da Davati Medical Supply, afirma ter recebido pedido durante negociações de lotes da vacina AstraZeneca.
Segundo ele, a cobrança foi feita por Roberto Ferreira Dias, diretor de Logística do Ministério da Saúde, em um jantar em Brasília em 25 de fevereiro de 2021. Na ocasião, também estavam presentes “um militar do Exército e um empresário lá de Brasília”, conforme o relato. Os nomes do militar e do empresário não foram revelados.
Dominguetti diz ter ouvido que, “para trabalhar dentro do ministério, tem que compor com o grupo”, e que “tinha que majorar o valor da vacina”. O valor a ser acrescentado para ser cobrado em propina, segundo ele, era de US$ 1 por dose. Dominguetti disse ter negado o pedido de propina e afirma não saber quem seria “o grupo” citado.
Ainda segundo o relato do representante da Davati Medical Supply que queria vender vacinas AstraZeneca para o governo, o jantar ocorreu na véspera de uma agenda oficial no Ministério da Saúde. Ele afirmou ter encontrado com Roberto Ferreira Dias no ministério no dia seguinte. Dias o teria colocado para esperar numa sala e dito que iria a uma reunião. Dominguetti então relatou ter recebido uma ligação – ele não diz de quem – perguntando se teria o acordo sobre a propina. Ele afirmou ter negado e disse que depois disso a negociação não evoluiu.
Segundo Dominguetti, ele também procurou Élcio Franco, então secretário executivo da pasta, mas as tratativas também não avançaram. “Ninguém queria vacina”, afirmou ele à Folha.
O jornal Folha de S.Paulo afirma que Roberto Ferreira Dias foi indicado para o cargo de confiança no Ministério da Saúde em 2019, na gestão do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta (DEM), por Ricardo Barros, que em meados de 2020 virou líder do governo na Câmara.
Ricardo Barros afirmou pelas redes sociais que “Roberto Ferreira Dias teve sua nomeação no Ministério da Saúde no início da atual gestão presidencial, em 2019, quando não estava alinhado ao governo”. “Assim, repito, não é minha indicação . Desconheço totalmente a denúncia da Davati”, escreveu. Roberto Dias não se manifestou até a noite de terça-feira (29). Após a publicação da reportagem, o Ministério da Saúde informou que ele será exonerado do cargo.
A vacina AstraZeneca foi desenvolvida pelo laboratório anglo-sueco em parceria com a Universidade de Oxford, do Reino Unido. A Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), ligada ao Ministério da Saúde, fez uma parceria para a produção do imunizante em território nacional. O acordo foi fechado em meados de 2020.
A negociação de doses da AstraZeneca pela Davati é citada como “ paralela ”. Em nota enviada ao portal G1, a AstraZeneca negou que tenha tido participação nas negociações com a empresa e disse que não usou intermediários. “Não houve representante da AstraZeneca e as vacinas são disponibilizadas por meio de acordos com o Ministério da Saúde e com a Fiocruz”, diz o texto.
O deputado Luis Claudio Miranda (DEM-DF) e seu irmão, o chefe do departamento de importação do Ministério da Saúde, Luis Ricardo Miranda, denunciaram suspeitas de irregularidades envolvendo a aquisição da vacina Covaxin pelo governo federal, cujo contrato chama atenção devido ao alto valor das doses.
Os alertas foram feitos em 20 de março de 2021 pessoalmente a Bolsonaro, em encontro no Palácio da Alvorada, residência oficial da Presidência, segundo os irmãos. Depois foram repetidos à CPI da Covid na sexta-feira (25) quando Luis Claudio e Luis Ricardo prestaram depoimento.
Na noite de terça-feira (29), a revista Crusoé revelou que em 31 de março, apenas 11 dias depois do encontro dos irmãos Miranda com Bolsonaro, o deputado foi chamado para uma reunião em que recebeu oferta de propina para parar de atrapalhar o negócio.
Conforme a Crusoé, ele foi convidado pelo lobista Silvio Assis para participar de uma reunião em uma casa no Lago Sul de Brasília. No encontro, Assis teria dito que o negócio envolvendo a aquisição da Covaxin não poderia dar errado, e teria tentado convencer o deputado a convencer o irmão, servidor do Ministério da Saúde, a não criar mais obstáculos. Ele teria falado ainda que o deputado poderia ser recompensado.
Já em maio houve um novo encontro. Segundo a Crusoé, estavam lá Assis e o próprio Ricardo Barros. Nessa conversa, sempre de acordo com a revista, o lobista teria demonstrado falar em nome da Precisa Medicamentos, empresa brasileira responsável por intermediar a negociação da Covaxin, produzida pela indiana Bharat Biotech, com o governo brasileiro. Ele teria prometido US$ 0,06 a Miranda por cada dose que fosse negociada. Considerando as 20 milhões de doses previstas no contrato, isso daria cerca de U$ 1,2 milhão, equivalente a R$ 6 milhões.
Oficialmente, o deputado Luis Claudio Miranda afirmou que prefere não se manifestar e que falará com a Polícia Federal caso seja convocado. A reportagem da revista afirma que, segundo Miranda contou a interlocutores, ele recusou as duas propostas de propina. Assis se manifestou dizendo que chegou a se encontrar com Miranda, mas que não tratou de vacinas.
Pelas redes sociais, Ricardo Barros disse que conhece Assis, que esteve em sua casa junto com Luis Miranda, entre “diversas autoridades e parlamentares”. Mas afirmou que nunca tratou com ele de temas relacionados a vacinas. “Reitero que não participei de negociação referente a compra da Covaxin”, escreveu.
O contrato para aquisição da Covaxin, assinado com intermédio da Precisa Medicamentos em 25 de fevereiro, previa a entrega de 20 milhões de doses da vacina a um custo total de cerca de R$ 1,6 bilhão. A Precisa e outras empresas do mesmo sócio têm histórico de irregularidades em contratos com o Ministério da Saúde, quando o órgão era comandado por Ricardo Barros no governo Michel Temer.
A entrega das doses de Covaxin deveria ocorrer “de forma escalonada entre os meses de março a maio” de 2021, segundo informou o Ministério da Saúde à época. Mas, até junho, nenhuma dose chegou. Com isso, apesar do empenho (reserva) do montante acordado no Orçamento federal, não houve pagamentos à Precisa por parte do governo. Nesta terça-feira (29), o Ministério da Saúde anunciou a suspensão do contrato. Integrantes do governo ainda avaliam a possibilidade de cancelar a compra por completo.
As suspeitas levantadas em torno de Ricardo Barros envolvendo a aquisição de vacinas pelo governo federal se intensificaram após o depoimento dos irmãos Miranda à CPI da Covid. O caso complicou ainda mais a situação do presidente Jair Bolsonaro, já que Barros é líder do governo na Câmara, ou seja, defende os interesses do Palácio do Planalto entre os deputados.
O parlamentar do PP já integrou a base aliada de vários governos anteriores. Foi líder do governo Fernando Henrique Cardoso, vice-líder na época de Luiz Inácio Lula da Silva e ministro da Saúde no governo de Michel Temer. Ele assumiu a liderança do governo Bolsonaro na Câmara em meados de 2020, quando o presidente se aproximou de partidos do centrão, grupo com histórico do fisiologismo que costuma dar apoio a governos em troca de espaço na máquina pública e acesso a verbas do Orçamento federal.
Além de ter sido citado nas reportagens da Folha e da Crusoé, o nome de Barros já apareceu em diversos questionamentos envolvendo a aquisição da Covaxin. Há suspeita de favorecimento na negociação da vacina indiana. Entre diversos pontos que chamaram atenção, o imunizante foi o mais caro entre os adquiridos. Sua negociação foi a mais ágil e também a única feita por meio de um intermediário que não vai produzir as doses – no caso, a farmacêutica brasileira Precisa Medicamentos, que tem um histórico de contratos contestados.
Há ainda outros pontos que levantaram questionamentos, como o fato de ter havido uma sequência de faturas divergentes do contrato, conforme relataram os Miranda à CPI. As faturas incluíam pedido de pagamento antecipado, algo que não estava previsto, e citavam ainda uma empresa que não estava no contrato, que senadores do grupo majoritário da CPI avaliam ser de fachada.
Os irmãos Miranda relatam uma “pressão atípica” no Ministério da Saúde para acelerar a importação das doses. No encontro com Bolsonaro, em 20 de março, segundo relataram na CPI, Bolsonaro teria dito que esse seria “ mais um rolo ” de Ricardo Barros.
Há ainda diversos outros pontos que levantaram questionamentos sobre o envolvimento de Barros na compra da vacina indiana pelo governo. Ele é autor de uma emenda a uma medida provisória que facilitou a aquisição da Covaxin.
O deputado também foi apontado como responsável pela nomeação de uma servidora que, segundo depoimento dos irmãos Miranda, deu aval ao prosseguimento da compra mesmo com divergências em relação ao contrato. Há ainda suspeitas que foram levantadas sobre o parlamentar envolvendo a tentativa de contratar outros imunizantes pelo governo federal. Em todos os casos, havia uma particularidade: uma empresa intermediária brasileira com alguma ligação com o líder do governo na Câmara.
Ex-ministro da Saúde no governo Temer, Ricardo Barros já é alvo de ação por contratos firmados em sua gestão à frente da pasta com a Global Saúde, empresa que tem o mesmo sócio da Precisa, intermediadora do contrato da Covaxin.
As suspeitas envolvendo a compra de imunizantes giram em torno de negócios realizados ou tratados em 2021. No ano anterior, quando a pandemia já assolava o mundo e o Brasil, Bolsonaro sabotou a aquisição de vacinas. O presidente desestimulou a imunização da população, levantando questionamentos falsos sobre a segurança das substâncias. E seu governo ignorou ofertas, como as feitas pela farmacêutica americana Pfizer e pelo Instituto Butantan, órgão do governo paulista que havia fechado parceria com o laboratório chinês Sinovac para a aquisição e produção da Coronavac. No caso dessas duas vacinas, rejeitadas inicialmente pelo governo e adquiridas posteriormente, não havia intermediários nos negócios.
Cientistas políticos ouvidos pelo Nexo apontam que, em junho de 2021, o PP de Ricardo Barros tem um papel relevante para o governo por dar sustentação política ao Executivo no Congresso e pela atuação do presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), no sentido de barrar o prosseguimento de pedidos de processo de impeachment contra Bolsonaro.
A abertura de pedidos de processo de impedimento é prerrogativa do presidente da Câmara. Arthur Lira foi eleito para o cargo com apoio do Planalto. Há mais de 100 pedidos na gaveta do pepista.
“O PP é o principal artífice da atual coalizão de governo, foi o protagonista dessa montagem”, disse ao Nexo Fernando Guarnieri, professor de ciência política do IESP-UERJ que estuda partidos políticos e eleições.
Rafael Câmara, pesquisador do centro de estudos legislativos da UFMG e pós-doutorando do departamento de ciência política da universidade, segue a mesma linha. Ele afirma que Bolsonaro depende “não só do PP, como da figura do Ricardo Barros, que é um articulador político muito importante do governo e exerce um papel que vai para além do PP como um todo e seus 41 deputados”. “Não é fácil para ele romper relações ou, digamos assim, entregar Ricardo Barros”, disse Câmara ao Nexo .
Para a cientista política Carolina de Paula, diretora executiva do Data-IESP, Bolsonaro “tem muito a perder se ele tiver uma ruptura com o PP”. “Claro que o PP também perde, porque vem se beneficiando com isso. A gente não sabe quem perde mais. Mas o poder do Arthur Lira poder abrir o impeachment de Bolsonaro abre uma carta muito grande para o Progressistas”, disse ela ao Nexo .
Apesar de não ter nomes no primeiro escalão, o PP conquistou cargos em diversas áreas no governo Bolsonaro. Em meio ao movimento de Bolsonaro de distribuir cargos ao centrão, o PP levou, por exemplo, o FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação). Em junho de 2020, o chefe do gabinete do senador Ciro Nogueira (PP-PI), Marcelo Lopes da Ponte, foi nomeado para a presidência do fundo, que tem um orçamento bilionário. Ele segue no posto em junho de 2021.
Além disso, parlamentares do PP estão na lista dos principais beneficiários do chamado “orçamento secreto”, conforme o jornal O Estado de S.Paulo. O esquema, revelado pelo veículo em maio de 2021, diz respeito à liberação de verba em troca de apoio parlamentar ao governo, e também gerou suspeitas de superfaturamento. Segundo técnicos do Tribunal de Contas da União, o acordo viola a Constituição .
Entre os pepistas beneficiários do esquema estão Arthur Lira e Ciro Nogueira, que é tido como aliado estratégico do Planalto. Nogueira é também integrante da CPI da Covid. A expectativa era de que ele encabeçasse a tropa de choque do governo na comissão, mas sua atuação foi apontada como “ apagada ”. O outro nome do partido na CPI é o do senador Luis Carlos Heinze (PP-RS), que ficou conhecido por defender medicamentos ineficazes contra a covid-19 com base em dados errados ou estudos inconclusivos.
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