O Brasil fantasioso de Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU
João Paulo Charleaux
21 de setembro de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h24)Presidente diz que assumiu um país à beira do socialismo, defende tratamento precoce que não funciona contra a covid e mente ao citar dados de desmatamento e manifestações governistas
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Jair Bolsonaro retira máscara antes de começar seu discurso na 76ª Sessão da Assembleia Geral da ONU
O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, fez nesta terça-feira (21) um discurso repleto de inverdades na abertura da 76ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York. Em 12 minutos, disse que não há corrupção em seu governo, defendeu o uso de remédios sem eficácia comprovada contra a covid-19 e disse que o 7 de Setembro , quando seus apoiadores saíram às ruas, foi a maior manifestação da história do Brasil.
“No último 7 de setembro, data de nossa Independência, milhões de brasileiros, de forma pacífica e patriótica, foram às ruas, na maior manifestação de nossa história, mostrar que não abrem mão da democracia, das liberdades individuais e de apoio ao nosso governo”
Este foi o terceiro discurso de Bolsonaro na Assembleia Geral desde que ele tomou posse como presidente do Brasil, em janeiro de 2019. Nas três ocasiões, Bolsonaro abriu sua fala criticando o comunismo, atacando países governados pela esquerda e acusando a imprensa de distorcer as informações a respeito de seu governo – que ele vê como exitoso, a despeito de ser reprovado por 53% da população .
Neste texto, o Nexo contextualiza o momento do discurso de Bolsonaro – quando ele aparece com seus piores índices de aprovação e encurralado pelo mau desempenho econômico e por investigações que ameaçam membros de seu governo e de sua família – e destaca seus principais tópicos.
No discurso anterior de Bolsonaro na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 22 de setembro de 2020, o índice de aprovação a seu governo estava no pico desde o início do mandato – à época, 37% dos brasileiros o consideravam “ótimo ou bom”. Já a rejeição a ele, que tinha sido de 44% na pesquisa anterior, feita em junho de 2020, tinha caído dez pontos percentuais, passando de 44% para 34%. Aquele foi o melhor momento do governo.
No discurso deste ano, em 21 de setembro de 2021, o presidente enfrenta cenário oposto – Bolsonaro está no pior momento de seu mandato , com 53% dos brasileiros considerando seu governo “ruim ou péssimo” e 22% considerando-o “ótimo ou bom”.
Enquanto a maioria dos chefes de Estado discursam sobre grandes temas que desafiam a humanidade (inteligência artificial, cibersegurança, paz, mudanças climáticas), Bolsonaro optou por um discurso que responde a seus interesses domésticos.
A um ano das eleições presidenciais – nas quais aparece em franca desvantagem nas pesquisas –, ele optou por atacar as gestões do PT, falar em privatizações e repetir slogans de campanha em favor da “família tradicional” e contra o comunismo, além de rebater acusações de que seu governo promove o desmatamento e ataca direitos dos povos indígenas.
Bolsonaro subiu ao púlpito usando máscara – algo que não faz quando participa de eventos públicos no Brasil. O presidente brasileiro tinha dito na véspera, em encontro com o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que não está vacinado contra a covid-19. O prefeito de Nova York, o democrata Bill de Blasio, chegou a dizer que Bolsonaro nem precisava ter ido à cidade – cujos protocolos sanitários obrigam a comprovação da imunização para frequentar locais fechados, mas não se aplicam à sede da ONU, que é território internacional.
Em seu discurso, o presidente brasileiro enalteceu a campanha de vacinação no país, omitindo o fato de que ele mesmo não se vacinou e, ao longo dos últimos dois anos, fez inúmeras declarações de descrédito em relação às vacinas. Bolsonaro disse que, até novembro de 2021, todas as pessoas que quiserem ser vacinadas no Brasil serão vacinadas, mas ninguém será forçado a isso. O governo brasileiro é contra o passaporte vacinal, ele avisou.
“Lamentamos todas as mortes ocorridas no Brasil e no mundo. Sempre defendi combater o vírus e o desemprego”
“Apoiamos a vacinação, mas nosso governo é contra o passaporte sanitário e qualquer obrigação.”
“Não entendemos por que muitos países, juntamente com grande parte da mídia, se colocaram contra o tratamento inicial. A história e a ciência saberão responsabilizar a todos”
O presidente brasileiro culpou os governadores dos estados pelo desemprego, a inflação e a desaceleração da economia. De acordo com ele, as políticas sanitárias usadas para barrar a transmissão do vírus – como lockdown e quarentena – foram responsáveis por isso.
Na versão apresentada por Bolsonaro, os governadores prejudicaram o país, mas ele, como presidente, editou medidas de socorro e ajuda financeira à população, que mitigaram esse quadro. O presidente não explicou que foi o Congresso quem exerceu pressão para que esses programas de socorro fossem criados e reeditados ao longo da pandemia.
Bolsonaro não citou nominalmente a cloroquina – medicamento que não tem eficácia contra a covid-19, apesar de ter sido promovido por sua gestão durante a pandemia – mas enalteceu o que chama de “tratamento inicial” contra a doença. “Eu mesmo fui um desses que fez tratamento inicial”, disse Bolsonaro.
O presidente disse que seu governo apoia a “autonomia do médico” para receitar medicamentos “off label” – nome usado por ele para justificar a administração de drogas cujo efeito contra a covid-19 não é comprovado. Essa prática é uma das linhas de investigação da CPI do Senado que podem afetar o presidente.
Outro eixo importante do discurso – e sobre o qual o presidente brasileiro também apresentou inverdades – é o da questão ambiental, pela qual o Brasil é cobrado com contundência por líderes de outros países.
“Nenhum país do mundo possui uma legislação ambiental tão completa quanto a nossa”, disse o presidente, em tom provocativo aos líderes europeus. Ele lembrou que a “Amazônia equivale à toda a Europa Ocidental” e “84% da floresta está intacta” – um argumento usado com frequência por membros de seu governo para refutar críticas de países europeus.
O número, no entanto, não corresponde a dados compilados pelo projeto Mapbiomas , uma parceria entre universidades, ONGs, institutos nacionais e o Google, que usa imagens de satélites para monitorar o desmatamento na Floresta Amazônica. Segundo a plataforma, entre 1985 e 2017 o bioma perdeu 18% de sua cobertura vegetal. Esse dado mostra que, quatro anos antes do discurso de Bolsonaro, a Amazônia tinha no máximo 82% de sua área vegetal não desmatada. Esse dado ainda não leva em consideração áreas que, apesar de não terem sido desmatadas, estão degradadas pela atividade humana.
O presidente afirmou ainda, de forma distorcida, que apenas 8% do território brasileiro é dedicado ao agronegócio. Na verdade, esse número se refere apenas a lavouras e terrenos para a agricultura. Somado ao terreno dedicado à pecuária, atividade associada ao desmatamento, esse percentual sobe para mais de 27% do território nacional – mesmo número que, aliás, ele apresentou em seu discurso na ONU em 2020.
No mesmo tom confrontacional, Bolsonaro disse esperar que os países desenvolvidos “cumpram seu compromisso de financiamento” do mercado de carbono – que é um mecanismo por meio do qual os países que excedem suas cotas de emissão podem comprar bônus de países que, como o Brasil, ficam aquém do limite.
Bolsonaro disse ainda que o país antecipou o cumprimento de suas metas climáticas – como a União Europeia também o fez – e aumentou as operações contra desmatamento ilegal. Ele mencionou que houve 32% de redução de desmatamento na Amazônia de janeiro a agosto de 2021. A área desmatada nesse período foi de 6.026 km², quase o dobro do montante registrado entre janeiro e agosto de 2018, última base de comparação antes de ele assumir o governo federal e promover um desmonte na área ambiental.
O presidente dedicou parte do discurso ainda a tratar de temas de relativa pouca relevância geopolítica internacional, como seus programas de privatizações e de concessões à iniciativa privada, que abrange aeroportos, por exemplo, ou os avanços em obras do “modal ferroviário” do país.
A pandemia, a economia e o meio ambiente formaram o tripé do discurso. Porém, grande parte do tempo foi dedicado a atacar o comunismo e “mostrar um Brasil diferente daquilo publicado em jornais ou visto em televisões”.
O Brasil promovido por Bolsonaro não tem corrupção, que, no discurso dele, aparece como algo associado ao PT e às esquerdas em geral. O presidente também se apresentou como um defensor da democracia, embora ataque o sistema eleitoral, xingue ministros do Supremo, enalteça a ditadura e torturadores do regime, e faça reiteradas ameaças de ruptura, respaldado por militares e militantes de extrema direita.
Bolsonaro disse que as manifestações protagonizadas por seus apoiadores em 7 de setembro de 2021 foram as maiores da história do país, embora tenham sido menores que muitas outras, como as da Diretas Já (1984), que pediam a volta das eleições diretas no Brasil após a ditadura, e as manifestações pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff (2013). Em São Paulo, por exemplo, Bolsonaro reuniu apenas 140 mil pessoas , de acordo com a Secretaria de Segurança do estado.
“O Brasil mudou e muito depois que assumimos o governo. Estamos há 2 anos e 8 meses sem qualquer caso de corrupção. O Brasil tem um presidente que acredita em Deus, respeita a constituição, valoriza a família e deve lealdade a seu povo”
“Temos a família tradicional como fundamento da civilização”
Em alguns momentos, o discurso de Bolsonaro pareceu comprimido, com uma miscelânea de temas distintos numa mesma frase, que o presidente lia comendo palavras e preposições. Ele juntou frases sobre indígenas, família, missões de paz e comunismo em sequência, sem aparente conexão.
Disse que o Brasil recebeu 400 mil imigrantes deslocados pela “ditadura venezuelana” e que vai conceder “visto humanitário para cristãos, mulheres, crianças e juízes perseguidos no Afeganistão”.
O presidente brasileiro lembrou que o país ocupará assento rotativo no Conselho de Segurança em 2022 e reeditou a defesa de que venha a ocupar um assento permanente no futuro, ao lado de americanos, franceses, ingleses, chineses e russos.
Todos os anos, o discurso do secretário-geral da ONU dá um retrato do estado do mundo e de seus principais desafios contemporâneos. Na 76ª Assembleia Geral, o português António Guterres mencionou seis principais desafios: paz e estabilidade; mudanças climáticas; desigualdades econômicas e sociais; desigualdade entre homens e mulheres; desigualdade de acesso à tecnologia e à internet, e proteção de dados pessoais contra grandes empresas do setor e governos; e infância e juventude.
“O mundo deve acordar. Estamos à beira de um abismo – e nos movendo na direção errada”
“Passamos no teste de ciências. Mas estamos tirando um ‘F’ em ética. A desigualdade no acesso às vacinas é uma obscenidade”
“Estamos a semanas de distância da Conferência do Clima em Glasgow, mas aparentemente a anos-luz de alcançar nossas metas. Devemos levar a sério. E devemos agir rápido”
Guterres afirmou ainda que há “bilionários viajando ao espaço enquanto pessoas passam fome”, referindo-se à primeira viagem de turistas civis ao espaço , realizada numa nave do bilionário Elon Musk, e à corrida particular entre os megaempresários Jeff Bezos e Richard Branson para entrar em órbita.
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