O potencial do Brasil para ajudar a reduzir a desigualdade vacinal
Estêvão Bertoni
06 de dezembro de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h33)Governo federal e Instituto Butantan falam em doar doses para países da América Latina com baixa cobertura e para a África, onde variante ômicron foi descoberta
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Matéria-prima para a produção da vacina chinesa Coronavac chega ao aeroporto internacional de Guarulhos, em São Paulo
Quase um ano após o início da vacinação contra a covid-19 no mundo, a desigualdade na distribuição das doses se tornou um dos principais obstáculos para o controle global da pandemia. Dados da OMS (Organização Mundial da Saúde) apontam que cerca de 89% dos imunizantes estão concentrados nas 20 nações mais ricas do planeta, enquanto apenas 6,2% da população dos países pobres recebeu ao menos uma dose.
As doações de vacinas anunciadas pelas principais potências emperraram e são consideradas insuficientes. No Brasil, onde 74,8% da população recebeu ao menos uma dose até o início de dezembro e a aplicação de uma dose de reforço para todos os adultos já foi anunciada, o governo federal e o Instituto Butantan, ligado ao governo paulista, agora cogitaram doar vacinas a regiões como a África. Nenhum plano, porém, chegou a ser concretizado.
A existência de regiões sem acesso às vacinas, onde o vírus circula livremente, preocupa as autoridades e especialistas por favorecerem o surgimento de variantes mais contagiosas — como a ômicron, descoberta na África do Sul em novembro. Com o risco de escaparem das vacinas, elas podem fazer a pandemia se arrastar indefinidamente.
Neste texto, o Nexo mostra qual a situação atual do Brasil em relação ao acesso às vacinas e qual seria a capacidade do país de contribuir para uma maior equidade na distribuição de doses no mundo.
Enquanto a taxa média de cobertura vacinal com duas doses ultrapassa 60% nos países de rendas alta e média-alta, apenas 3% da população completou o esquema vacinal em países pobres até o começo de dezembro. Essa desigualdade, para a OMS, pode levar a 200 milhões de novos casos e mais 5 milhões de mortes por covid-19 em 2022.
Com o objetivo de evitar a repetição de uma tragédia, a OMS e a ONU (Organização das Nações Unidas) lançaram em outubro um plano para acelerar a vacinação no mundo. A meta traçada foi a de vacinar 40% da população de cada país até o final de 2021 e 70% até junho de 2022.
Mas o não cumprimento das promessas de doações de imunizantes pelos países ricos deve impedir que essas taxas sejam alcançadas. Em setembro, os Estados Unidos, por exemplo, haviam prometido doar mais de 1 bilhão de doses de vacinas. Apenas 25% delas tinham sido entregues no começo de dezembro. Já a União Europeia havia distribuído apenas 19% do que prometeu.
Sem as doações, a OMS estima que 82 países dos 92 mais pobres não devem conseguir atingir a marca de 40% de vacinados até o final de 2021.
Até o começo de dezembro, o Brasil havia conseguido vacinar 64% de sua população com duas doses, taxa superior a de países como Israel (62%) e Estados Unidos (59%). Em relação à aplicação de ao menos uma dose na população, a taxa brasileira (76,9%) superava a do Reino Unido (74,9%) e a da Alemanha (71,3%).
378 milhões
de doses de vacinas contra a covid-19 haviam sido distribuídas pelo Ministério da Saúde aos estados até a segunda-feira (6)
Apesar do negacionismo do governo do presidente Jair Bolsonaro, que dificultou e retardou a compra de vacinas, os números do país são atribuídos à atuação dos laboratórios públicos da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e do Butantan em fechar acordos para a produção de vacinas da AstraZeneca e da Sinovac no Brasil, o que garantiu uma certa estabilidade no número de doses disponíveis. Além disso, especialistas lembram do peso do Programa Nacional de Imunizações, que consegue levar as doses a todos os brasileiros, e ao hábito da população em se vacinar, fruto do sucesso do próprio programa.
Até o começo de dezembro, o país convivia com o sucesso de regiões como o estado de São Paulo — que ainda em outubro conseguiu aplicar ao menos uma dose em todos os adultos (a capital paulista vacinou todas as pessoas com 18 anos ou mais com duas doses em novembro) — e o atraso, por exemplo, do Amapá, onde só 37% havia completado todo o esquema vacinal.
Muitas regiões registram um alto número de pessoas com atraso na aplicação da segunda dose, e se veem forçadas a fazer busca ativa de moradores. No final de novembro, no Piauí, ao menos seis cidades tiveram de devolver ao estado doses da Coronavac por falta de público para tomar a vacina, apesar de nenhum dos municípios ter completado a vacinação de todos os adultos.
No caso da Coronavac, a vacina tem validade de 12 meses e pode ser remanejada para outras localidades. Mas o episódio levantou a discussão sobre a possibilidade de doação de vacinas para outros países, já que muitos estados brasileiros não estão conseguindo aplicá-las.
Ainda em outubro, ao participar da reunião com a Cúpula do G20, na Itália, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, reconheceu em entrevista que o Brasil poderia doar vacinas aos países pobres.
“O Brasil certamente assumirá a sua posição de protagonista de um líder global e participará desta iniciativa para reforçar o acesso às vacinas no mundo”
Na época, cogitou-se a doação pelo Brasil de 12,5 milhões de doses , número muito pequeno se comparado à promessa, por exemplo, dos Estados Unidos, mas que poderia ser útil a países como o Haiti, com cerca de 11 milhões de habitantes. Desde setembro, já se discutia que o Brasil poderia abrir mão de uma parcela de vacinas a que teria direito por meio do consórcio Covax Facility, coordenado pela OMS.
Pelo mecanismo, o governo encomendou 43 milhões de vacinas, mas recebeu apenas cerca de 14 milhões até setembro. O restante — de quase 28 milhões de doses —, poderia entrar num acordo para beneficiar países da América Latina, o que daria crédito político para o Brasil em relação à região e às organizações internacionais de saúde.
Ainda em outubro, em evento nos Estados Unidos, o ministro da Economia, Paulo Guedes, também havia reconhecido a possibilidade de o Brasil realizar uma diplomacia das vacinas. “Assim que, em dois meses, tivermos toda a população adulta completamente vacinada, vamos começar a vacinar nossos vizinhos”, disse na ocasião.
O comportamento do Brasil em ajudar os vizinhos foi citado pelo vice-diretor da Opas (Organização Pan-Americana da Saúde), braço da OMS na América, Jarbas Barbosa, que afirmou em entrevista em novembro esperar que o “Brasil possa vir a doar vacinas”.
“Estamos fazendo um convite a todos os países que possam ter doses sobrando para que eles façam doações. Isso, além de ser um ato de panamericanismo, que é um dos pilares da Opas, também é uma medida de saúde pública muito importante”, disse.
O continente americano tem sofrido com a desigualdade vacinal. Países como Honduras, Bolívia e Venezuela só alcançaram um terço da população com duas doses até o começo de dezembro. O caso mais dramático é do Haiti, onde a taxa de totalmente imunizados é de apenas 0,58%.
O Ministério da Saúde, porém, não realizou doações até o começo de dezembro e não anunciou detalhes dos planos. A Fiocruz disse ao Nexo que sua produção de vacinas está “voltada para atender ao Programa Nacional de Imunizações, do Ministério da Saúde”. “Caberia ao ministério qualquer decisão sobre doação de doses dessa produção”, disse.
O Brasil tem histórico de ajuda a outros países, como os da África, a exemplo do que aconteceu em 2013, quando uma parceria da Fiocruz com Cuba levou vacinas para uma região africana que sofria com a meningite. Em 2008, durante o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a fundação inaugurou seu primeiro escritório internacional em Moçambique.
Uma outra possibilidade de o Brasil ajudar países pobres seria por meio de doações ou acordos feitos pelo Butantan. Ao jornal Folha de S.Paulo, no final de novembro, o diretor-presidente do instituto, Dimas Covas, afirmou que estudava doar doses da Coronavac para países da África.
Em setembro, ele já havia dito em entrevista que a prioridade do instituto era enviar vacinas para outros países . “Países da América do Sul e países da África vão receber a Coronavac, além de outros estados brasileiros, que já firmaram contrato com o Butantan”, afirmou.
As últimas doses de um acordo de 100 milhões de vacinas com o Ministério da Saúde foram entregues em setembro. Desde então, o Butantan tenta vender mais 15 milhões de doses da Coronavac ao governo federal, mas não vem obtendo resposta .
O ministério não incluiu a vacina da Sinovac na estratégia de reforço vacinal (feita prioritariamente com a Pfizer) e não conta com ela para 2022 — a pasta prevê 354 milhões de doses para o próximo ano. Em nota ao Nexo, na segunda-feira (6), o Butantan afirmou ainda não ter fechado acordo para a venda do imunizante a países africanos. “Após o término do contrato com o Programa Nacional de Imunizações, passamos a ofertar a vacina para outros estados e países, que seguem em tratativas”, disse.
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