Como é a educação voltada a crianças de povos tradicionais
Amanda Saori Teixeira e Ana Carolina Aguiar
15 de janeiro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 23h35)Projetos pedagógicos diferenciados em áreas indígenas e quilombolas buscam resgatar ancestralidade e evitar o apagamento cultural desses povos
Indígena da comunidade Pataxó em frente ao prédio do Ministério da Educação, em Brasília
Este conteúdo foi produzido pelos autores como trabalho final do Lab Nexo de Jornalismo Digital, que teve como tema “Primeira Infância e Desigualdades” e foi realizado no segundo semestre de 2021. O programa é uma iniciativa do Nexo Jornal em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal e apoio da Porticus América Latina e do Insper.
Com a Constituição de 1988 e o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) de 1990, a legislação brasileira definiu o acesso à educação como um direito básico essencial desde a primeira infância. A concretização de tais direitos é um trabalho dos governos eleitos, com um desafio extra no que se refere a povos tradicionais: como oferecer um ensino que evite o apagamento cultural de indígenas e quilombolas, centrais na formação do país?
Na última década, houve avanços para lidar com o tema. Em junho de 2012, foram determinadas diretrizes curriculares nacionais para a educação indígena que reconhecem a importância de uma política de ensino diferenciada. Em 20 de novembro do mesmo ano, também foram estabelecidas diretrizes do gênero para crianças quilombolas. O PNE (Plano Nacional de Educação) de 2014, com metas para a década seguinte , incluiu a oferta de um ensino plural e culturalmente diverso para crianças de comunidades tradicionais.
Neste texto, o Nexo mostra dados atuais sobre a educação voltada para indígenas e quilombolas no Brasil e traz experiências em ambientes escolares que buscam reforçar a cultura e a ancestralidade de crianças dos povos tradicionais.
Um levantamento feito pelo Todos pela Educação com dados do Censo Escolar 2020, no Anuário Brasileiro da Educação Básica 2021 , traz um quadro sobre a educação voltada aos povos tradicionais nos 5.570 municípios brasileiros.
420
é o número de municípios com matrículas em terras indígenas, totalizando 250.884 em 3.363 escolas
279
é o número de municípios em terras indígenas que têm projetos pensados especificamente para essa população, em 1.214 escolas
658
é o número de municípios com matrículas em áreas remanescentes de quilombos, sendo um total de 260.087 em 2.523 escolas
484
é o número de municípios em terras quilombolas onde há projetos voltados para a realidade dessa população, em 365 escolas
Especificamente sobre a educação infantil, há uma escassez de dados que quantifiquem com precisão se as políticas públicas criadas para as comunidades tradicionais são efetivas e condizem com o que está respaldado pela lei. Veja abaixo a experiência de duas delas.
O Quilombo de Conceição das Crioulas, no sertão nordestino – especificamente no município pernambucano Salgueiro –, tem cerca de 17 mil hectares. Dentro dele, há vários sítios e núcleos familiares que o compõem.
Localizada nesse quilombo, a Escola Municipal Quilombola José Neu de Carvalho recebe crianças do território da educação infantil e do 1º segmento do ensino fundamental (do 1º ao 5º ano).
A educação infantil tem 41 crianças matriculadas que vêm de 32 comunidades pertencentes ao quilombo. Na AQCC (Associação Quilombola de Conceição das Crioulas), há várias frentes de luta, como a regularização territorial e a educação escolar quilombola.
Há cerca de 30 anos eles tentam construir um currículo diferenciado. “Uma das iniciativas foi a elaboração do projeto político pedagógico a partir do olhar e de um diagnóstico feito na comunidade com a participação de lideranças, jovens, professores, dos mais velhos e das mais velhas”, disse ao Nexo Márcia Jucilene do Nascimento, gestora da escola.
“A gente vem nessa construção diária e constante dessa educação que valoriza a nossa cultura, fortalece a nossa história e reafirma a nossa identidade”, completou a educadora quilombola, que trabalha com o tema há 26 anos.
No território, além da escola José Neu de Carvalho, há outras três instituições de ensino. Mais uma da educação infantil e do 1º ao 5º ano, uma do 6º ao 9º ano e uma de ensino médio.
O projeto político-pedagógico e a concepção de educação compreendem as quatro escolas que vivenciam e trabalham a partir desse programa. A base dele são sete eixos temáticos:
História
A força da consciência política e identitária apoiada nas lutas, na resistência, nos saberes das pessoas mais velhas e em valores coletivos da comunidade.
Território
É um território que reafirma a sua identidade, fortalecendo seus costumes, tradições e valores sendo um espaço de resistência, de lutas coletivas e de conquistas.
Identidade
O protagonismo de mulheres negras guerreiras – na base da sua história – guia a organização, luta, ancestralidade, história e cultura do quilombo.
Organização
Os valores da partilha, da ajuda mútua e da reciprocidade são elementos triviais na organização social e senso de coletividade da comunidade.
Saberes próprios
Os saberes das pessoas mais velhas e os conhecimentos construídos em sintonia com a ancestralidade mantêm viva a história do quilombo.
Gênero
O debate e a reflexão sobre questões de gênero dentro de uma sociedade machista. Diante disso, visa a busca de novas práticas e atitudes para que sejam garantidos os direitos das mulheres.
Interculturalidade
Os conhecimentos construídos por outros povos são fundamentais para a história da comunidade, por ser um instrumento de luta para o povo e a reafirmação da sua identidade étnica e cultural.
A partir desses eixos, são desenvolvidas atividades e ações em todas as áreas de conhecimento.
A Escola Municipal Quilombola José Neu de Carvalho já foi de um fazendeiro. Segundo Nascimento, a estrutura física e pedagógica curricular era por si só já “colonizadora”.
“É um desafio grande, mas a gente vem tentando já há algum tempo construir outras narrativas e fazer outras ações nessa perspectiva de que essa escola seja um instrumento de luta. Principalmente das lutas por políticas e direitos”, disse a gestora da escola.
Ainda de acordo com Nascimento, o fortalecimento da identidade das crianças acontece por meio de atividades desenvolvidas em que elas aprendem sobre a sua história sob um olhar racializado e descolonizado.
“A gente faz isso quando os mais velhos e mais velhas vêm até a escola, quando nós vamos até eles nas roças e nos espaços que contam essas histórias, quando visitamos os espaços de memória”, afirmou.
O objetivo é que a partir da primeira infância as crianças possam se conectar com a sua ancestralidade por meio dessas histórias narradas. “Nessa fase, a ideia é que eles possam sair do espaço das quatro paredes da escola e ir até onde essas histórias estão e vivenciem pessoalmente. Andando, indo, vendo, sentindo, falando, se expressando, compreendendo dessa forma.”
Uma das atividades realizadas na escola foi a produção de livros por alunos com a colaboração dos professores e professoras. Em 2017, Nascimento produziu com a sua turma um livro que contava a história da Pedra Preta, localizada no território do quilombo Conceição das Crioulas.
Os alunos, em um primeiro momento, assistiram a um vídeo do Crioulas Vídeo– produtora audiovisual de documentários da própria comunidade – que mostrava os pontos históricos do território e eles escolheram escrever sobre a Pedra Preta.
“Essa foi a primeira etapa da produção do livro. Depois, fomos até a pedra e à casa de uma historiadora da comunidade para contar a história. Também consultamos outros mais velhos para a pesquisa”, disse Nascimento.
Após essas visitas, uma professora ensinou aos estudantes algumas técnicas para produzir livros com materiais como algodão e bordado por meio de oficinas de arte realizadas na comunidade. Feito isso, os alunos foram divididos para a escrita dos capítulos do livro.
Também nesse período de pandemia, com o ensino remoto, os materiais didáticos enviados às crianças possuem temas diferentes definidos para estimular o contato com a cultura de Conceição das Crioulas: brinquedos, brincadeiras, cantigas de roda, esportes e artesanato do quilombo.
Além dessas atividades, a escola realiza oficinas de artesanato das bonecas do Caruá, de barro e de trancelim. “A gente também tem a prática de levar as crianças nas fazendas onde as pessoas da comunidade estão plantando e produzindo. Esses passeios buscam fortalecer esse reconhecimento de um espaço nosso”.
A Escola Indígena Municipal Kanata-T-ykua possui em sua base pedagógica o ensino dos saberes tradicionais do povo Cambeba – ou Kambeba –, fazendo o resgate de toda uma cultura tradicional assim como a escola quilombola.
A etnia Cambeba se divide em cinco aldeias no Brasil: quatro próximas ao Rio Solimões e uma no Rio Cuieiras, todas no Amazonas. Além do território nacional, esse povo também está no Peru, próximo à capital Lima.
É na região do Rio Cuieiras, na Comunidade Indígena Três Unidos– localizada na capital amazonense, em Manaus –que se encontra a Escola Indígena Municipal Kanata-T-ykua. A instituição de ensino tem cerca de 25 alunos divididos entre ensino infantil – pré-escola – e primeiro segmento do ensino fundamental (1° ao 5° ano).
Família do povo Cambeba participa de aula de canoagem, no rio Cueiras, no estado do Amazonas
Historicamente, o povo Cambeba deixou de se identificar como etnia indígena durante o século 18. O principal motivo foi a discriminação e perseguição que eles sofriam por pessoas não-indígenas. A partir dos anos 1980, com o fortalecimento da luta indígena, os Cambeba voltaram a se assumir enquanto povo e atuar na luta pelas causas indígenas.
Esse resgate histórico e importância da tradição Cambeba é a base de todo o projeto pedagógico da escola. A instituição entende que a valorização da cultura do povo indígena e seus saberes tradicionais fortalecem a criança para que ela se entenda como parte do povo Cambeba.
“As crianças são preparadas desde a educação infantil a entender porque que é do povo Cambeba, porque que vive na sua aldeia, quais são os seus projetos, os seus costumes e modo de viver”, disse ao Nexo Raimundo Cruz da Silva, diretor da escola.
O ensino indígena é feito de diferentes formas: desde a alfabetização das crianças em língua portuguesa e língua indígena Cambeba, até as brincadeiras e conhecimentos orais repassados dos anciões da aldeia. Toda a cultura é valorizada por meio de músicas, pinturas, grafismos característicos, tintas naturais e histórias.
A união entre os saberes tradicionais da aldeia e o conhecimento do currículo não indígena visa instruir a criança para que ela possa conviver tanto com o povo Cambeba quanto no mundo externo. Segundo Silva, esse trabalho é considerado uma “educação que vem da base, uma educação que é a realidade da criança indígena e essa realidade que a gente alinha com os conhecimentos que vêm do currículo da escola não indígena”.
A Escola Indígena Municipal Kanata T-ykua existe há mais de 25 anos. Durante a sua existência, sempre reforçou a ancestralidade e importância da educação indígena não apenas para crianças, mas também adolescentes, adultos e idosos. Essa é a base do fazer pedagógico do professor indígena.
“Na verdade, não é só o professor indígena que é o professor, mas toda a comunidade trabalha em prol de uma educação específica, diferenciada e bilíngue para todas as crianças que ali residem na aldeia”, explica Silva.
No entanto, nem sempre a importância dessa educação focada em saberes tradicionais é reconhecida. Um dos grandes empecilhos citados por Silva é a conciliação entre um currículo próprio que incentive a cultura indígena e contemple o currículo da Secretaria de Educação.
Além disso, Silva reforça que “uma das maiores dificuldades é os próprios governantes conhecerem e valorizarem o que é educação escolar indígena, por que o povo indígena quer escola indígena, aquela educação bilíngue, intercultural, específica e diferenciada”.
Mesmo com todas as dificuldades, os mais de 20 anos de luta para que a escola indígena seja valorizada em Manaus está colhendo resultados. Em 16 de setembro de 2021, o prefeito David Almeida sancionou a Lei nº 2.781/2021 , a qual regulamenta a categoria de escola indígena e reconhece professores indígenas com direito à educação continuada.
“É através das lutas de professores e lideranças indígenas que a gente está conseguindo se organizar para que a escola Kanata tenha currículo próprio”, disse Silva. A própria língua Cambeba como disciplina ofertada na escola representa um avanço frente ao ensino dos saberes tradicionais.
Cada conquista é um passo a mais em direção ao reconhecimento e valorização dos povos tradicionais. É por meio dessa educação que a ancestralidade dessas crianças é contemplada também, por isso o valor de se lutar por esse ensino. “A educação, seja ela indígena, seja ela quilombola, tem que vir da base, é uma educação que tem que vir da realidade do povo”, conta Silva.
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