Expresso

‘A jaula’: um suspense sobre a cultura do punitivismo no Brasil

Cesar Gaglioni

17 de fevereiro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h21)

Refilmagem de longa argentino, estreia do documentarista João Wainer na ficção fala sobre o discurso de ‘bandido bom é bandido morto’

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FOTO: DIVULGAÇÃO/BUENA VISTA BRASIL

Chay Suede em cena de "A jaula"

Chay Suede em cena de “A jaula”

Um carro com vidros escurecidos e blindados, isolado acusticamente e com travas que só podem ser abertas pelo proprietário. Esse é o protagonista de “A jaula”, suspense de João Wainer (“Junho – O mês que abalou o Brasil”) estrelado por Chay Suede e Alexandre Nero. O longa chega aos cinemas do país nesta quinta-feira (17).

Na trama, Suede é um ladrão de carros. Nero, por sua vez, é um médico que transformou o veículo em uma armadilha – uma jaula. Suede só vai conseguir sair de lá quando o dono do automóvel permitir. A partir dessa premissa – uma releitura do filme argentino “4×4” (2018) – o roteiro de Mariano Cohn e João Cândido Zacharias se propõe a discutir o punitivismo no país e a mentalidade de que “bandido bom é bandido morto”.

Neste texto, o Nexo apresenta o filme “A jaula”, a história que inspirou o roteiro e a discussão que ele traz.

Lá e de volta outra vez

Em 2017, o cineasta argentino Gastón Duprat estava mudando de canal quando se deparou com a história de um ladrão de carros em alguma cidade do Brasil – ele não se lembra qual – que acabou ficando preso dentro de um carro enquanto tentava roubá-lo, após o proprietário acionar um dispositivo que trancava as portas.

A notícia foi a faísca inicial de “4×4”, filme que inspirou “A jaula”. Duprat queria então tocar em um tema que considera tabu na Argentina: a desigualdade .

“O filme não estigmatiza o ladrão, não há uma perspectiva ruim sobre sua aparência ou sua forma de se expressar. O tema é outro, é a desigualdade, a maior preocupação nacional”, disse ao site InfoBae em 2018. “É um tema tabu. Espero que o filme traga debates na direita e na esquerda”, afirmou.

A versão brasileira

“A jaula” é o primeiro filme de ficção do fotojornalista e documentarista João Wainer. Como o longa se passa totalmente em um só cenário, houve certo conforto nas gravações, o que ajudou Chay Suede a criar seu personagem.

“Tínhamos uma única locação, isolada, o que nos deu conforto para trabalhar. Assim, conseguimos fazer algo que é raro no cinema, filmar em ordem cronológica, o que ajudou muito na construção do Chay, o personagem dele vai definhando”, disse o cineasta ao jornal Folha de S.Paulo nesta quinta-feira (17).

Para entrar no personagem, Chay fez um regime radical e perdeu nove quilos. “Eu tomava proteína com água depois do treino de boxe, que começava às cinco horas. Depois, fazia uma única refeição, o almoço, quando comia muito pouco, só o essencial”, afirmou, também à Folha.

O astro diz que há muitos paralelos entre o roteiro e a situação sociopolítica do país, embora o filme tenha sido rodado em 2018 – antes da eleição do presidente conservador Jair Bolsonaro e antes dos episódios mais recentes de polarização.

“Quando fizemos o filme há quatro anos, a realidade era uma. Ninguém poderia prever que haveria uma pandemia, que haveria uma escalada da violência, que o filme ia demorar para estrear. Ele foi feito num quadro, será visto em outro. Estou muito curioso para saber qual será a reação do público. Talvez daqui a dez anos seja visto de outra maneira”, afirmou Chay ao jornal O Estado de S. Paulo.

O discurso de ‘matar bandido’

O personagem de Alexandre Nero em “A jaula” materializa um discurso que tem adesão em boa parte da sociedade brasileira: a ideia de que “bandido bom é bandido morto”.

Um estudo da Universidade Cândido Mendes publicado em 2017 já revelava que 31% dos moradores da cidade do Rio de Janeiro apoiavam integralmente o enunciado. Nas eleições de 2018, esse tipo de lógica guiou as propostas de campanhas eleitorais vitoriosas, como a de Bolsonaro e a de Wilson Witzel (PSC), para o governo fluminense.

Dois anos antes, uma pesquisa a nível nacional do Instituto Datafolha apontou o mesmo caminho. Publicado em outubro de 2015, o estudo mostrou que 50% dos brasileiros concordam com a frase “bandido bom é bandido morto”. Outros 45% discordam, e 5% não sabem ou não quiseram responder.

Marcos César Alvarez, chefe do Departamento de Sociologia da USP (Universidade de São Paulo), vê a adesão ao discurso como um populismo punitivo que se apresenta como opção ideológica.

“Setores de classes médias, que moram em bairros mais protegidos, com uma distância, inclusive física [em relação aos alvos da letalidade policial], apostam na pauta do que chamamos de populismos punitivos. Assim promovem uma hierarquização social entre ‘cidadãos de bem’ e outros cidadãos e justificam sua inação”, disse ao Nexo .

Hamilton Gonçalves Ferraz, doutor em direito pela PUC-Rio e professor da Universidade Estácio de Sá, acredita que há uma certa paranoia quando se fala de segurança pública do ponto de vista meramente punitivo.

“Há uma ‘mentalidade inquisitória’, que insiste em permanecer no imaginário social brasileiro”, afirmou ao Nexo . “Num mundo de ‘bons’ e ‘maus’, em que o Estado é investido da função de ‘combater o mal’, nesse mundo inquisitorial atravessado por medos (antes, do herege, da bruxa, hoje, do traficante), acredita-se que a sociedade pode e deve ser ‘salva’ por meio da punição dessas pessoas.”

“Como ‘combater o mal em nome do bem’ dificilmente encontra limites em leis, pois se entende que é algo a ser feito a todo custo, termina-se por justificar o injustificável, desde abusos, processos ilegais até execuções policiais”, concluiu.

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