A proposta de cobrar pelo acesso a universidades públicas
Isabela Cruz
26 de maio de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h31)Câmara discute PEC que cria mensalidade para alunos de maior renda. Debatido há anos, tema é levantado pela direita com bandeira de justiça social, enquanto críticos veem preâmbulo de privatização do ensino superior
Alunos da Universidade de São Paulo
A Câmara dos Deputados discute uma PEC (proposta de emenda à Constituição) que pretende estabelecer a cobrança de mensalidades nas universidades públicas do país. Na terça-feira (24), a Comissão de Constituição e Justiça da Casa aprovou a realização de uma audiência pública para debater o tema, ainda sem data marcada.
O fim do ensino superior gratuito universal é discutido há anos no Brasil. A proposta atual é defendida por parlamentares mais à direita do espectro político como medida de justiça social. Relator do texto, o deputado Kim Kataguiri (União Brasil-SP) destaca que as mensalidades serão cobradas “só dos mais ricos”. Parlamentares de outros partidos, no entanto, consideram que a restrição da gratuidade das universidades acabaria afetando negativamente toda a sociedade.
Neste texto, o Nexo explica o que propõe a PEC, organiza os argumentos que o debate sobre o financiamento do ensino superior envolve, e mostra o perfil dos estudantes que atualmente têm acesso às universidades públicas.
A Constituição estabelece a “gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais”, independentemente do poder aquisitivo do aluno ou de sua família. A PEC, de autoria do deputado paulista General Peternelli, também do União Brasil, quer mudar esse cenário.
A proposta estabelece que as instituições públicas de ensino superior não só podem, como “devem” cobrar mensalidades, com a ressalva de que a gratuidade permanece para estudantes “que não tiverem recursos suficientes”.
Atualmente, cobranças nas universidades públicas são feitas apenas em pós-graduações lato sensu (cursos de especialização, diferentes de mestrados ou doutorados), conforme autorizou o Supremo Tribunal Federal em 2017. No julgamento, os ministros entenderam que a garantia da gratuidade se refere apenas a atividades “de manutenção e desenvolvimento do ensino ”, não abarcando nem as atividades de pesquisa, nem as de extensão universitária, como é o caso das especializações (focadas no aperfeiçoamento profissional dos estudantes).
O texto deixa para os governos federal e estaduais definir a renda máxima de um aluno para que ele tenha direito à gratuidade. A ideia é que cada universidade deverá ter uma comissão para avaliar a situação de cada aluno.
Quem defende a mudança argumenta que o serviço público das universidades é predominantemente usado por pessoas mais ricas, enquanto os custos desse serviço são arcados por todos, inclusive pelos mais pobres, via tributação. A ideia defendida, portanto, é a de que os mais pobres estariam pagando com seus impostos para os mais ricos estudarem, numa espécie de “ distribuição de renda ao avesso ”.
Para Kataguiri, por exemplo, a educação brasileira é atualmente “uma máquina de desigualdade social (tirando dos pobres e dando para os ricos)”. Ele defendeu ser preciso “investir na educação básica e ampliar o acesso dos pobres na universidade”.
General Peternelli também sugere que a cobrança de mensalidades vai afastar estudantes mais ricos das universidades públicas, dando lugar aos mais pobres. “A gratuidade generalizada, que não considera a renda, gera distorções gravíssimas, fazendo com que os estudantes ricos – que obviamente tiveram uma formação mais sólida na educação básica – ocupem as vagas disponíveis no vestibular em detrimento da população mais carente, justamente a que mais precisa da formação superior, para mudar sua história de vida”, disse ele na proposta.
No documento, Peternelli também afirma que “em 2017, o Banco Mundial divulgou um estudo demonstrando que a cobrança de mensalidade nas universidades públicas brasileiras seria uma forma de diminuir as desigualdades sociais” no país.
O documento do Banco Mundial mencionado abrange diversas áreas do gasto público e, ao entrar no tema da Educação, propõe a cobrança de mensalidade a partir da ideia de que “os gastos públicos com o ensino superior beneficiam majoritariamente os estudantes das famílias mais ricas”.
A avaliação usa dados de 2015 e não considera nem os sistemas de cotas raciais e sociais, que mudaram o perfil dos estudantes de universidades públicas no país, nem o impacto social da produção científica dos pesquisadores das universidades públicas.
A ideia de que um acesso amplo ao ensino superior, abrangendo a população pobre, é necessário ao desenvolvimento do país é fundamentada em números. Estudos mostram que aqueles formados em faculdades têm menos chance de ficar desempregados e ganham bem mais do que quem tem apenas o ensino médio.
O quadro demonstra que o ensino superior é uma demanda do mercado de trabalho nacional, conforme escreveu o economista Naércio Menezes Filho, professor do Insper e da USP (Universidade de São Paulo), no jornal Valor Econômico.
250% a mais
ganha quem tem ensino superior completo em relação a quem não tem, em média
Por décadas as universidades públicas foram ocupadas por alunos com maior poder aquisitivo, que eram os que tinham maiores chances de passar no vestibular.No entanto, desde a implementação da Lei de Cotas em todo o âmbito federal, em 2012, o perfil dos estudantes universitários do país mudou muito.
Um levantamento da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior) e do Fonaprace (Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assistência Estudantil) mostrava em 2019 que a grande maioria dos estudantes das universidades federais é de baixa renda .
70,2%
dos estudantes nas instituições federais de ensino superior têm renda familiar mensal de até 1,5 salário mínimo per capita
4,3%
dos estudantes dessas instituições têm renda familiar mensal superior a 5 salários mínimos
O Mapa do Ensino Superior no Brasil publicado em 2021 pelo Instituto Semesp também revela que 60% dos estudantes nas instituições públicas de ensino superior em geral (federais e estaduais) fizeram o ensino médio na rede pública de ensino .
Deputados do PT, PSB, PSOL e PSD são contra a proposta, pois a veem como um preâmbulo da privatização do ensino público. Nessa perspectiva, a possibilidade de financiamento privado deixaria os governos mais à vontade para fazerem cortes ou represamentos de recursos para o ensino e a pesquisa científica — áreas que, apesar de essenciais para o desenvolvimento do país, não costumam gerar ganhos eleitorais imediatos.
Nesse mesmo sentido, Gregório Grisa, doutor em educação e professor do IFRS (Instituto Federal do Rio Grande do Sul), defende que a derrubada da garantia constitucional da gratuidade das universidades públicas deixa o acesso ao ensino superior à mercê de decisões “do governante da vez”.
“Abre-se a porta para cobranças de toda sorte, para decisões arbitrárias que não irão encontrar mais o impeditivo do princípio constitucional. Tirar da carta magna e deixar a mercê de instrumento jurídico de baixa densidade (decidido só pelo Executivo) seria um erro histórico ”, escreveu Grisa no Twitter.
Os deputados contrários à PEC também argumentam que, a depender dos critérios de renda estabelecidos, a cobrança de mensalidade pode afastar estudantes das universidades públicas ou levar famílias ao endividamento.
Existe ainda uma preocupação com a criação de “castas” nas faculdades, enfraquecendo a união dos estudantes na “busca por melhores condições de ensino”, como disse o PSB em nota.
Embora os defensores da PEC se digam preocupados com o acesso dos mais pobres à educação superior, o PSOL destaca que a proposta “ignora a ampliação de cotas sociais e raciais para o ensino superior e ignora a discussão de políticas públicas a fim de viabilizar a matrícula e permanência de estudantes provenientes das classes sociais mais vulneráveis”.
Instituições de ensino federais também se manifestaram contra a proposta, enfatizando que não foram consultadas sobre o assunto.
Em nota, a reitoria da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), a maior universidade federal do país, junto com gestores de outras nove instituições do Rio, afirmou que “a cobrança de mensalidades não resolverá o problema do subfinanciamento das universidades públicas, porém reforçará a desigualdade social”, criando diferenças entre os alunos. A nota cobra que a Câmara se dedique a recompor o Orçamento público para o ensino e a pesquisa.
Os críticos à PEC também apontam que as universidades não teriam como dar conta de avaliar de forma eficiente as condições econômicas de todos os alunos, para decidir de quem cobrar.
“Imagina uma pessoa de 25 anos que mora com os pais, qual renda vai ser levada em consideração: a dela ou da família? E se uma pessoa de 18 anos é independente e mora sozinha? E uma pessoa de 40 anos que mora com o pai e recebe uma mesada?”, afirmou ao site BBC Brasil Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) eex-ministro da Educação.
Janine propõe que, em vez de “criar todo um sistema burocrático para colocar tudo isso em prática e obter um ganho muito pequeno”, um governo preocupado com justiça fiscal no país deveria se preocupar com uma reforma estrutural do Imposto de Renda , para que os mais ricos do país passassem a contribuir mais com o Orçamento público em geral.
Economistas da esquerda à direita, incluindo o ministro da Economia Paulo Guedes , apontam que o Imposto de Renda no Brasil, em razão das faixas existentes e dos sistemas de isenção fiscal, acaba cobrando proporcionalmente menos dos mais ricos do que dos mais pobres. Em 2021, aprovou uma reforma do Imposto de Renda, mas o projeto está travado no Senado .
A deputada Tábata Amaral (PSB-SP), inspirada no modelo australiano, propõe uma cobrança tributária especificamente das pessoas que frequentaram universidades públicas. Na proposta da parlamentar, seriam tributados os profissionais que, depois de formados , passassem a auferir renda acima de um determinado limiar, ainda a ser definido, “como forma de retribuir à sociedade” os ganhos que conseguiram a partir do ensino superior gratuito.
Defensor do modelo defendido pela parlamentar, Paulo Meyer Nascimento, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) afirmou ao jornal O Globo que esse tipo de cobrança poderia render R$ 5 bilhões ao ano aos cofres públicos. Autor da PEC em debate, General Peternelli afirmou ser favorável a esse modelo também.
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