Expresso

Por que o ‘pacote de bondades’ de Bolsonaro não sofre resistência

Isabela Cruz

02 de julho de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h43)

Contestada por atropelar regras fiscais e eleitorais, PEC que amplia programas sociais e tende a beneficiar o presidente na tentativa de reeleição avança no Congresso com apoio da base governista e da oposição também

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FOTO: WALDEMIR BARRETO/AGÊNCIA SENADO – 30.JUN.2022

Placar mostra 72 votos SIM e 1 voto NÃO

Placar de votação no Senado da ‘PEC das bondades’

Descrita como eleitoreira e criticada por seus problemas legais , a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que institui o chamado “ pacote das bondades ” e turbina programas sociais do governo Bolsonaro até o fim do ano eleitoral foi aprovada na quinta-feira (30) por praticamente a unanimidade dos senadores, incluindo os da oposição. Nos próximos dias, o texto será votado na Câmara, onde também não deve encontrar resistência .

A menos de 100 dias das eleições, o presidente Jair Bolsonaro (PL), que foi refratário em conceder esses benefícios no passado e hoje tenta sair do segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto, caminha para conseguir a aprovação de uma PEC que tende a favorecê-lo na disputa à reeleição, enquanto dribla o teto de gastos e a lei eleitoral, com potenciais prejuízos para a solidez da economia e da democracia no país, segundo os críticos.

Em meio a uma crise social e econômica, a proposta avança com o aval dos partidos que rivalizam com Bolsonaro, seja no Congresso ou na disputa ao Palácio do Planalto, atualmente liderada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Neste texto, o Nexo mostra o contexto, as negociações e os cálculos dos opositores que tornam esse avanço possível .

Emergência e crise

O Brasil vive atualmente um cenário em que 33 milhões de pessoas passam fome, em meio à inflação que supera os 11% no acumulado dos últimos 12 meses, enquanto a renda dos brasileiros chegou ao seu menor nível em 10 anos.

É nesse contexto que governo e parlamentares, da base governista e da oposição, discutem há meses como frear o preço dos combustíveis, um dos principais fatores que contribuem para o cenário macroeconômico. A escalada do petróleo vem desde meados de 2020, com a retomada da atividade econômica após o impacto inicial da pandemia de covid-19, e se intensificou com a guerra na Ucrânia iniciada em fevereiro de 2022.

As propostas de políticas mais voltadas à população foram apresentada após um vaivém do governo em tentar definir o foco da reação à crise, que passou pormudanças na tributação dos combustíveis e investidas contra a Petrobras . O texto atual da PEC foi apresentado na quarta-feira (29) pelosenador Fernando Bezerra (MDB-PE), aliado de Bolsonaro e ex-líder do governo no Senado.

R$ 41,25 bilhões

é o gasto total estimado com as medidas do pacote

A PEC prevê a distribuição dos seguintes benefícios até o fim do ano eleitoral:

  • Aumento do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600
  • Bolsa de R$ 1.000 mensais a caminhoneiros autônomos
  • Benefício a taxistas no valor total de R$ 2 bilhões
  • Aumento do vale-gás a cada bimestre de R$ 53 para R$ 120
  • Meio bilhão de reais para a distribuição de alimentos a famílias de baixa renda
  • Gratuidade a idosos no transporte público bancada pela União
  • Subsídios de R$ 3,8 bilhões para a cadeia de etanol

A expansão dos gastos é, em tese, inviabilizada pelas regras fiscais como o teto de gastos, que limita as despesas do governo a um nível pré-determinado, assim como pela legislação eleitoral, que tem mecanismos para tentar evitar que medidas eleitoreiras sejam tomadas. Para contornar essas restrições, a PEC aprovada no Senado prevê a declaração de estado de emergência , dada “a elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos sociais deles decorrentes”.

A manobra foi amplamente aceita pelos parlamentares, mas gerou constrangimento e críticas ao governo. “É claro que vamos votar ‘sim’, mas é doloroso. É doloroso pela forma como está sendo apresentado. As finalidades são ótimas, mas a forma, o momento e a inoportunidade são visíveis ”, afirmou o senador Confúcio Moura (RO), do MDB. O partido pretende concorrer à Presidência com a senadora Simone Tebet (MS), que também votou a favor da proposta.

O argumento geral para o voto favorável foi a necessidade de socorro à população. “As pessoas estão desesperadas , há famílias inteiras passando fome”, afirmou o senador gaúcho Paulo Paim, do PT. “A inflação explodiu, a carestia voltou e a recessão também. A taxa de juros está nas alturas. Mediante tudo o que eu falei, é claro que eu vou votar ‘sim’”.

Pré-candidato ao Planalto pelo PDT, Ciro Gomes chamou a proposta de “PEC do Desespero”. No Twitter, escreveu : “temos um Executivo bandido e perdido. Um Legislativo acuado, cercado, de um lado, pelas labaredas de uma tragédia social e pressionado internamente pelo rolo compressor de uma maioria oportunista”. Os dois senadores do PDT votaram “sim” à PEC.

Cálculos do governo e da oposição

Único no Senado a votar contra a PEC, José Serra (PSDB-SP) vê a proposta como uma “bomba fiscal” que, ao violar o teto de gastos previsto na Constituição, compromete a confiança geral na economia brasileira. “A perda de credibilidade fiscal vai estimular inflação, juros mais elevados e reduzir os investimentos necessários para a geração de emprego e renda”, escreveu o tucano no Twitter.

Serra disse ao Nexo que os gastos para o enfrentamento ao cenário de crise socioeconômica poderiam ser cobertos, por exemplo, pelo remanejamento das despesas orçamentárias. “Se todos estamos tão preocupados com a fome e com a pobreza, por que não propusemos a redução das emendas do relator ou do fundo eleitoral ?”, disse ele.

Para o senador, que vai concorrer a deputado federal em 2022, a proximidade das eleições afetou o voto dos demais senadores, não só da base governista, mas também da oposição. “A proposta e a votação acabaram tendo um cunho eleitoreiro para todos”, afirmou Serra.

Nesse sentido, o cientista político Bruno Bolognesi, professor da UFPR (Universidade Federal do Paraná), afirma que a oposição perdeu a capacidade de se contrapor à PEC a partir do momento em que o texto foi colocado na pauta do plenário. “Poderiam ter feito algo antes, mas, depois que a PEC chegou ao plenário e virou notícia, não tinha mais o que fazer: seria impossível um voto contra não pesar contra o PT e a candidatura de Lula”, disse Bolognesi ao Nexo .

‘Contenção de danos’ do texto

Além dos debates fiscais em torno da PEC, a proposta também foi muito criticada pelos impactos antidemocráticos que ela pode gerar ao declarar estado de emergência para driblar a legislação eleitoral. Para que o presidente da vez que concorre à reeleição não tenha vantagem desproporcional sobre os demais candidatos, a legislação eleitoral proíbe a criação de novos benefícios em ano de votação, mas admite exceções para situações emergenciais.

“Abre-se um precedente perigoso para todo futuro presidente fazer o mesmo ”, afirmou ao Nexo na sexta-feira (1º) Élida Graziane, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora da Fundação Getulio Vargas. Para ela, a alegação de emergência dos governistas às vésperas das eleições não se justifica, entre outros motivos, porque a alta do petróleo já ocorre há meses, sem que o governo tenha alterado a política de preços da Petrobras ou tributado de forma extraordinária os lucros da estatal .

Professor de direito administrativo da USP (Universidade de São Paulo), Vitor Rhein Schirato também avalia que a situação de emergência é fabricada e afirma que, além da violação à Lei das Eleições, a PEC também viola a própria Constituição, que proíbe o abuso do poder econômico e político. “ Acabou a lei eleitoral brasileira ”, disse Schirato em entrevista ao jornal O Globo.

Sobre esses pontos, o senador petista Jean Paul Prates (RN), que é líder da minoria no Senado e votou a favor da PEC, afirma que foi retirado do texto um dispositivo que pretendia liberar por completo o governo de qualquer restrição ou proibição prevista em lei. Dessa forma, segundo ele, “as restrições eleitorais seguem vigentes, cabendo à Justiça Eleitoral avaliar, caso a caso, se benefícios concedidos implicam abuso de poder econômico”.

A oposição justifica o apoio à manobra por ter atuado “para conter substancialmente os impactos nocivos da proposta”, segundo nota divulgada por Prates. Veja abaixo pontos do texto original que acabaram derrubados.

O que foi barrado

BLINDAGEM TOTAL

Versão anterior da previa que a declaração do estado de emergência permitiria ao governo atuar sem “ qualquer vedação ou restrição prevista em norma de qualquer natureza”. Para opositores, isso abria margem para que Bolsonaro implementasse ainda mais benefícios sociais às vésperas da votação, de forma eleitoreira.

INSTITUIÇÕES BANCÁRIAS

Noutro ponto, a proposta dava liberdade para o Ministério da Economia escolher os bancos que irão efetuar os pagamentos à população. Já na versão aprovada, as instituições escolhidas deverão ser federais, sujeitas às regras de transparência pública.

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Um dos pontos do texto autorizava o governo Bolsonaro a usar até 5% dos valores previstos para o Auxílio Brasil e para o Auxílio Gás para “operacionalização e atualização tecnológica necessária para a concessão do benefício”. Opositores viam nisso brecha para o governo se autopromover e conseguiram incluir uma vedação expressa a despesas com publicidade.

Disputa pelo crédito eleitoral

Previsto no “pacote de bondades”, o valor de R$ 600 para parcelas do programa federal de distribuição de renda já era defendido pela oposição desde 2020, quando estava em discussão o auxílio emergencial pago na pandemia. Por essa perspectiva, portanto, não surpreende o apoio dessas siglas à PEC.

Pesquisador no Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), o cientista político Fernando Meireles compara a votação da PEC ao que ocorreu em 2005, na votação da reforma da Previdência durante o primeiro governo Lula. Naquele momento, o PSDB e o PFL (atualmente União Brasil ), partidos que faziam oposição ao petista, tiveram de votar junto com o governo “porque ficariam numa posição muito contraditória se não votassem a favor de uma proposta da qual tinham sido grandes defensores nos anos anteriores”, disse Meireles ao Nexo .

O que a oposição tenta fazer agora é atrair para si o possível crédito eleitoral que benefícios sociais costumam gerar. Lula, por exemplo, foi ao Twitter para recuperar uma postagem sua de outubro de 2021 em que já defendia o aumento do Auxílio Brasil para R$ 600, num momento em que o governo defendia as parcelas de R$ 400.

Assim como o debate sobre o valor do benefício, a disputa pelo crédito eleitoral decorrente dele também não é nova. Ainda em junho de 2020, no contexto das primeiras respostas federais à pandemia de covid-19, Bolsonaro disse diversas vezes que era ele o responsável pela definição do auxílio emergencial de R$ 600, embora a proposta inicial do governo tivesse sido de R$ 200. O valor só aumentou por pressão do Congresso , numa época em que o chamado centrão ainda não era base governista.

Agora, a campanha de Bolsonaro pretende se valer do aumento do Auxílio Brasil para fazer uma espécie de relançamento do programa , que substituiu o programa Bolsa Família — uma marca dos governos petistas. Pesquisas de intenção de voto mostram que, mesmo com a mudança de nome, Lula continua sendo o favorito entre os beneficiários.

Os próximos passos

Para ser aprovada uma PEC precisa passar por dois turnos de votação no Senado, já realizados, e na Câmara também. Em cada um desses turnos, a proposta deve ter o apoio de pelo menos três quintos dos parlamentares. Na Câmara, isso significa 308 deputados.

Líder do PT na Câmara, o deputado Reginaldo Lopes (MG) afirmou à coluna Painel do jornal Folha de S.Paulo que o partido ainda discute como irá atuar nas próximas votações da PEC.A presidente da sigla, Gleisi Hoffmann, chamou a proposta de “vergonhosa” depois da votação no Senado. Os senadores petistas, porém, afirmam que não receberam orientação de voto da direção nacional da legenda, segundo a coluna.

Já o líder do PSB, deputado Bira do Pindaré (MA), afirma não haver possibilidade de a oposição votar contra medidas que sempre defendeu, como o aumento do Auxílio Brasil. Segundo ele, porém, os partidos vão exigir que a proposta seja debatida e passe por comissões, o que não ocorreu no Senado. Já o líder do governo, deputado Ricardo Barros (PP-PR), fala em aprovação do texto sem alterações.

O partido Novo, que não tem senadores, mas está na Câmara, já afirmou que vai acionar o Supremo Tribunal Federal contra a PEC, que avalia como inconstitucional.

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