A reedição da ‘ideologia de gênero’ na campanha de 2022
Malu Delgado
06 de setembro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h42)Bolsonaro e sua equipe voltam a investir na pauta na reta final da disputa. Especialistas avaliam ao ‘Nexo’ as razões que levam presidente a repetir a estratégia e apostar nesse discurso, muito presente nas eleições de 2018 e 2020
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Bolsonaro no palco da Marcha para Jesus, em São Paulo
A pauta da “ideologia de gênero”, que mobiliza o presidente Jair Bolsonaro (PL), seus apoiadores e eleitores há décadas está de volta e reeditada na reta final da campanha de 2022. Em 2018, quando Bolsonaro foi eleito para o primeiro mandato, esse tema teve a eficiência testada por sua campanha e núcleos bolsonaristas, com a disseminação de fake news e fatos deturpados.
Em sabatina na RedeTV! na quinta-feira (1º), Bolsonaro repetiu a mesma narrativa de 2018 e afirmou que o ensino fundamental foi deturpado em governos anteriores “via ideologia de gênero, entre outras coisas”. No mantra bolsonarista, o governo do PT aprovou livros didáticos que incentivavam a sexualização de crianças, o que não é verdade. “Tínhamos livros absurdos simulando crianças fazendo sexo”, disse o presidente. Ele alegou que seu governo está mudando a educação para que crianças possam aprender o currículo básico das escolas “e não aprender a fazer sexo a partir de seis anos de idade”.
O livro citado por Bolsonaro nunca foi adquirido ou distribuído pelo Ministério da Educação. Essa retórica bolsonarista já foi contestada por especialistas em educação em 2018 e pela própria Justiça Eleitoral. As acusações em relação aos procedimentos do Ministério da Educação sob o governo do PT, de acordo com o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), são falsas . A principal narrativa é a do chamado “kit gay”.
Neste texto, o Nexo mostra análises de especialistas em política, religião e comunicação sobre as razões pelas quais o presidente e sua equipe investem mais uma vez nessa retórica na reta final da disputa em que tem como principal adversário o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A repetição das mesmas narrativas sobre ideologia de gênero e “kit gay” é uma estratégia de Bolsonaro para conquistar votos de indecisos, em especial do eleitorado conservador e cristão, sobretudo mulheres. As intenções de voto para Bolsonaro permaneceram estáveis na sondagem do Datafolha divulgada no dia 1º de setembro, e Lula oscilou na margem de erro. Porém, a possibilidade de Lula vencer no primeiro turno é cada vez mais remota, por margem muito estreita. Assegurar a extensão da disputa para o segundo turno é o que move a campanha bolsonarista.
“A questão da ideologia de gênero acaba sendo um tema estratégico para Bolsonaro não apenas entre os evangélicos, mas no eleitorado mais conservador e mais cristão. Temos também pessoas ligadas à Igreja Católica que vão encampar esse discurso. Bolsonaro vê nos setores deste eleitorado uma oportunidade de conquistar votos, especialmente dos indecisos”, afirmou ao Nexo Luciana Santana, doutora em ciência política e professora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas.
Para a cientista política, é previsível que nos próximos 30 dias essa prática seja intensificada pelo núcleo bolsonarista, quando a eleição se mostra bastante acirrada. “Esse discurso, de alguma maneira, tem eficácia. Vide o que aconteceu em 2010, quando Dilma Rousseff disputou [a Presidência da República] pela primeira vez, e o tema aborto veio à tona. Era uma eleição que tinha tudo para ser resolvida no primeiro turno, e acabou indo para o segundo turno”, disse Santana.
Editora-geral do Coletivo Bereia, que faz a checagem de fatos publicados em mídias religiosas e em mídias sociais brasileiras com conteúdos sobre religiões e suas lideranças no Brasil e no exterior, a jornalista Magali Cunha levanta dúvidas sobre a eficácia desse material nestas eleições. “O cenário é bastante diferente de 2018. Bolsonaro tem, agora, um governo a ser avaliado. Em 2018, ele era a figura do salvador da pátria, da família, anticorrupção”, disse ao Nexo .
Magali Cunha, que também é pesquisadora do Iser (Instituto de Estudos da Religião), confirma que o Coletivo Bereia “está identificando a retomada de vários temas relacionados à ideologia de gênero, com ênfase mais forte na questão do aborto e de direitos LGBTI+. “Alguns destes materiais como, por exemplo, a cartilha que teria sido distribuída nos tempos do Ministério da Educação, uma cartilha ensinando sobre homoafetividade para crianças, aquela tal cartilha que Bolsonaro teria mostrado no Jornal Nacional em 2018 , voltam com o mesmo discurso e o mesmo tom”, afirmou Cunha.
A cartilha, que não existiu, é chamada pelos bolsonaristas de “kit gay”. Ela integra o que o Bereia chama de “fake news requentada” . Em 2011, o Ministério da Educação planejava divulgar um material chamado “Escola sem homofobia” para estimular discussões sobre educação sexual e sexualidade nas escolas. A reação de setores conservadores foi tamanha que a publicação foi suspensa.
Além desse material, há novas peças também falsas circulando, segundo Magali Cunha, em especial sobre o tema do aborto. A pesquisadora observa que “o pânico moral é um recurso muito forte desde as eleições de 2010”. “Para impedir a eleição de Dilma Rousseff já havia discurso de temor, pânico, colocando a temática da religião e da família”. Essa estratégia tem como foco o público católico e evangélico com a intenção de “capturar votos”, frisa a especialista. “Em 2020, nas eleições municipais, se provou que não é tão eficaz essa estratégia, na medida em que as pessoas usam outros recursos para avaliar seus candidatos.”
Além das fake news sobre o “kit gay”, o Coletivo Bereia mapeou novas peças que estão circulando intensamente, com temas da chamada “cristofobia”. “É um termo criado no contexto em que as igrejas serão perseguidas se governos de esquerda assumirem, dizendo que a liberdade dos cristãos de pregar o evangelho vai ser retirada por conta da liberalização sexual e das drogas, etc”, disse Magali Cunha. Bolsonaro conta com uma aliança forte nas próprias igrejas, acrescenta, para tentar essa busca de votos.
A construção do discurso contra a “ideologia de gênero” não foi iniciada na campanha de 2018, reforça a pesquisadora Isabela Kalil, coordenadora da pós-graduação em antropologia da Fespsp (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo). Esse discurso esbarra na própria construção da imagem de Bolsonaro, explica a antropóloga, que em 2018 publicou a pesquisa “Quem são e no que acreditam os eleitores de Jair Bolsonaro”.
“A figura do Bolsonaro a partir dessa perspectiva de um pré-candidato à Presidência vai sendo construída ao longo da década de 2010. Bolsonaro se envolveu em polêmicas, acusações, questões relacionadas a posições homofóbicas, racistas, etc. Uma questão importante é o chamado ‘kit gay’, de como um material anti-homofobia foi pejorativamente chamado de ‘kit gay’. Isso é algo que acontece no período de 2010, 2011 e 2012, e vai ser depois importante para a base da campanha em 2018”, disse a professora ao Nexo .
O presidente, avalia Kalil, passou anos se aliando aos segmentos ligados ao conservadorismo religioso ou ultrarreligioso, sobretudo em temas relacionados a gênero e sexualidade. Essa agenda ganhou força no país durante a polêmica do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos, divulgado pelo governo federal em 2009 e reeditado em 2010, no governo Lula. O plano gerou enorme controvérsia por tentar propor um debate sobre direitos LGBTI+, tratar o aborto como uma questão de saúde pública e debater ações anti-homofobia.
Na pesquisa que conduziu sobre os eleitores de Bolsonaro, Kalil identificou 16 diferentes perfis de cidadãos brasileiros que apoiaram a eleição do ex-deputado. “A ‘ideologia de gênero’ tem sido mobilizada para expressar um amplo espectro de acusações que vão desde pedofilia, transfobia, até críticas ao ensino de sexualidade nas escolas”, aponta a pesquisa.
Pelo menos três perfis identificados seriam alvos preferenciais desta estratégia bolsonarista: a) as “mães de direita”, que querem uma escola para seus filhos sem “ideologia de gênero” e defendem que a “inocência” e a “ingenuidade” infantil sejam preservadas; b) os líderes religiosos, que adotam a retórica de defesa da família contra o “kit gay” e outros pecados, extremamente críticos do feminismo e defensores da “família tradicional”; e c) os fiéis religiosos, cristãos defensores da “família tradicional”, católicos ou evangélicos, que consideram o PT responsável por levar a “ideologia de gênero” para as escolas.
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