O que fazer com as terras desmatadas da Amazônia
Beatriz Gatti
07 de outubro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h45)Com baixa produtividade, agropecuária é o setor que mais ocupa áreas que sofreram destruição florestal na região. Especialistas falam ao ‘Nexo’ sobre alternativas para melhorar o uso do solo
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Floresta amazônica cercada por terras desmatadas para o plantio de soja no Mato Grosso
A Amazônia Legal já perdeu, nos últimos 50 anos, cerca de 20% da sua cobertura original, segundo monitoramento do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). O desmatamento acumulado soma mais de 83 milhões de hectares, o equivalente às áreas de Portugal e Espanha juntas.
A destruição da floresta na região, que engloba o bioma Amazônia e parte do Cerrado e do Pantanal, voltou a crescer de forma intensa desde 2019 e tem seus principais impactos conhecidos: aumento dos níveis de CO2 que contribuem para a mudança climática , desequilíbrio de ciclos hídricos, perda de biodiversidade, mudanças nos habitats, entre outros.
É consenso entre especialistas em meio ambiente que é preciso conter urgentemente os níveis de desmatamento da floresta. Mas e as áreas que já foram desmatadas? O que acontece com elas e de que maneira elas podem ser aproveitadas? Neste texto, o Nexo esclarece como as terras desmatadas na Amazônia são ocupadas atualmente e conversa com especialistas sobre formas mais sustentáveis de utilizá-las.
A maior porção das áreas privadas e públicas desmatadas na Amazônia Legal é ocupada pela pecuária . Quase 75% delas viram pasto, de acordo com um relatório do projeto Amazônia 2030, iniciativa que reúne pesquisadores e organizações a fim de criar um plano de desenvolvimento sustentável para a região.
Os dados que baseiam o estudo foram obtidos a partir de análises feitas pelo Inpe e pelo MapBiomas, projeto que mapeia anualmente como o solo de cada bioma está sendo usado, além de monitorar sinais de fogo e cursos hídricos nas regiões. Só no ano de 2019, a atividade pecuária cresceu tanto que elevou o índice de ocupação para 90% do total de terras desmatadas, de acordo com um outro relatório publicado pelo Amazônia 2030 e coordenado pelo pesquisador Paulo Barreto.
A segunda maior parcela de terras desmatadas é ocupada por vegetação secundária – cerca de 17% a 18% do total –, que engloba tanto áreas de florestas restauradas pelo ser humano quanto a regeneração natural. Também são consideradas vegetação secundária as terras que a pecuária degradou e deixou em repouso ou abandonou. “Uma vez que a floresta primária foi retirada, pode haver o retorno da floresta, e é justamente essa vegetação secundária que nasce em áreas já desmatadas antes”, explicou ao Nexo a economista Clarissa Gandour, do grupo de pesquisas CPI (Climate Policy Initiative) Brasil, que faz parte do Amazônia 2030.
Áreas agrícolas tomam cerca de 8% das terras desmatadas na Amazônia. O restante, que não chega a 1% – menos de 1 hectare no total – é ocupado por reflorestamento e atividades de mineração , segundo a especialista.
Os levantamentos mostram que as terras desmatadas, mesmo quando em uso, têm baixa produtividade, ou estão ociosas. Ou seja, a destruição da floresta e seus danos não necessariamente se traduzem em ganhos econômicos significativos.
A taxa ocupada por vegetação secundária é, por si só, um exemplo de como o desmatamento não serviu para o aproveitamento de terras.
Ainda segundo o relatório do Amazônia 2030, entre os 15,7 milhões de hectares correspondentes à vegetação secundária, há 7,5 milhões de hectares degradados ocupados, há pelo menos seis anos, por florestas se regenerando naturalmente. Nos outros 8,2 milhões, que estão em repouso ou foram recentemente abandonados pela pecuária, a vegetação secundária existe há menos de seis anos.
“Desmataram, largaram a terra, e aí, devido a algumas condições biofísicas favoráveis na região, a floresta acaba voltando”, disse a economista. Por um lado, diz ela, o potencial regenerativo da floresta é algo a se comemorar. Mas, por outro, a vegetação secundária é “um sintoma de um padrão absolutamente ineficiente do uso do solo”, segundo Gandour.
De acordo com Luis Oliveira Jr., pesquisador do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia) e membro do MapBiomas Amazônia, esse contexto se relaciona com a grilagem . “A pessoa desmata e tenta de alguma forma obter o título da propriedade para que no futuro possa concretizar a venda e lucrar nesse processo”, contou ao Nexo . Uma estratégia utilizada nesse apossamento ilegal é espalhar algumas cabeças de gado pelas terras e justificar seu uso pela pecuária.
Pelas imagens de satélite é possível observar que, em toda a Amazônia, a produtividade da pecuária não corresponde aos 75% de terras desmatadas – ou 60 milhões de hectares – que ela ocupa. Ou seja, é muita terra para pouco boi.
Na avaliação de Clarissa Gandour, esse modelo de divisão gera um ônus coletivo que começa a nível local, se amplia para o Brasil e se estende para o mundo pela importância da Amazônia para a regulação de ciclos hídricos e atenuação dos efeitos das mudanças climáticas .
“A forma como essas terras estão sendo usadas hoje é um desperdício. A gente continua cortando, destruindo, queimando a floresta para não usar essas áreas de maneira produtiva”, afirmou a economista. “Estamos deixando de aproveitar, no bom sentido, uma oportunidade incrível de ser uma potência na produção agropecuária, uma potência na produção de produtos florestais e uma potência na conservação.”
Segundo um levantamento do CPI Brasil , o potencial de aumento da produtividade pecuária na Amazônia pode chegar a 29% sem a necessidade de desmatar novas áreas.
O relatório do Amazônia 2030 apresenta o conceito do “paradoxo amazônico”, que propõe buscar no problemático processo de ocupação da região as próprias soluções para atenuar as consequências dele. Uma dessas oportunidades seria, segundo os pesquisadores, melhorar a produtividade da pecuária na região.
De acordo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento , as projeções indicam um aumento de 17% na demanda por carne bovina no Brasil até 2030. “As áreas já abertas são capazes de atender a demanda, o que diminuiria a pressão para desmatar áreas de floresta nativa”, disse Luis Oliveira Jr.
No cálculo do Amazônia 2030, isso deixaria cerca de 37 milhões de hectares livres para usos que contribuam ao reequilíbrio ambiental, como a regeneração natural ou o plantio ativo de árvores nativas.
Para Clarissa Gandour, as soluções são mais simples do que parecem. “Mudanças na produtividade não exigem um super investimento tecnológico, não estamos falando de um salto tecnológico gigantesco, mas de práticas já conhecidas e adotadas no país.”
Uma delas é o olhar para as práticas de manejo de pastagem. Deslocar o gado e, por exemplo, cercar a área onde ele estava é uma técnica simples que pode ajudar no desgaste do solo. Assim, a pastagem se recupera com mais eficiência para receber os bois. Instalação de infraestrutura de transporte e assistência técnica são outras alternativas não muito difundidas atualmente na Amazônia e que poderiam tornar mais eficaz a produção de gado. Mudanças na dieta dos animais podem mitigar a emissão do metano, gás do efeito estufa liberado por ruminantes.
De acordo com o pesquisador Paulo Barreto, também do Imazon, cabe ao governo promover incentivos como créditos rurais a quem investir em ganhos de produtividade.
Falar em produtividade não diz respeito somente à pecuária, segundo Gandour. Ela destaca que a restauração, ou restauro, da floresta pode gerar ganhos econômicos. “Precisamos entender realmente como mudar esse padrão produtivo na área”, disse.
O restauro é um método de recuperação das florestas que depende da ação do ser humano. Ele também é considerado vegetação secundária e difere do reflorestamento, que tem como foco espécies exóticas. No restauro, há o plantio de mudas de árvores de espécies nativas das regiões desmatadas que, com proteção e tempo, poderão contribuir para voltar a fortalecer o ecossistema.
Investir em métodos que aliam o plantio de árvores exóticas ou nativas a culturas agrícolas, forrageiras ou arbustivas é outra boa prática para a recuperação ambiental. É o que fazem os SAFs, sistemas agroflorestais , que podem ajudar a gerar renda para os povos da Amazônia a partir do plantio de espécies nativas como o açaí, destacou Luis Oliveira.
A valorização da vegetação secundária pode significar também aproveitar oportunidades de mercados como o de restauro e o de crédito de carbono , já que a floresta em pé é valiosa em um contexto global de defesa do meio ambiente. “Quando você restaura áreas florestais, você está sequestrando o carbono da atmosfera e mitigando o processo de mudanças climáticas, além de devolver habitats naturais e ter um ganho em biodiversidade e no equilíbrio do ciclo hidrológico”, afirmou o pesquisador.
Algo importante para engatar tais soluções, de acordo com Gandour, é ter mecanismos para proteger também a vegetação secundária. “A política pública precisa enxergá-la e protegê-la, porque os nossos sistemas oficiais [de monitoramento] hoje não detectam perda de vegetação secundária”, explicou.
Criar novas políticas públicas é tão importante quanto cumprir a legislação que já existe. “É absolutamente fundamental e prioritário fazer valer a lei na Amazônia e ter todo o arcabouço de comando e controle, que inclui fiscalização em campo pelo Ibama, implementar o Código Florestal , ter atuação dos estados, ter processos de investigação, fiscalização e sanção”, disse Gandour.
Ela destaca que os programas de crédito rural podem funcionar ainda como aliados no combate à impunidade na Amazônia ao desincentivar comportamentos ambientalmente irresponsáveis.
“Existe ali um contexto de permissividade, vale tudo. E isso vai corroendo o ambiente econômico da região”, afirmou a economista. Se uma pessoa quer entrar para esse mercado, ela dificilmente terá condições competitivas diante de quem não paga imposto, pratica grilagem ou extrai madeira ilegalmente, por exemplo. “Então, o que eu, que quero fazer tudo certinho, faço? Eu não entro nesse mercado, e ele vai sendo ocupado por quem está atuando na ilegalidade”, argumentou.
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