As pesquisas que tentam tornar o arroto do boi mais limpo
Beatriz Gatti
19 de dezembro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h51)Emitido por ruminantes, gás metano contribui para a crise do clima. Novas tecnologias tentam reduzir o dano com mudanças na alimentação e até máscara para o gado
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Testes na Irlanda oferecem algas marinhas a vaca, enquanto medem a emissão de metano a partir de um dispositivo movido a energia solar
Quase 20% das emissões de metano liberadas anualmente pelo mundo vêm de ruminantes – animais como bois, cabras e ovelhas, cujo processo digestivo é chamado de fermentação entérica –, segundo dados da FAO (órgão da ONU para a Alimentação e a Agricultura). De acordo com o SEEG (Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa), no Brasil, os rebanhos foram responsáveis por 65% da quantidade de CH4 liberada só pelo país em 2021.
Os números geram preocupação quanto às mudanças climáticas, já que o metano é o segundo gás mais importante como causa do aquecimento global, atrás apenas do gás carbônico. Por isso, especialistas tentam desenvolver diferentes estratégias para limpar os gases emitidos pelos rebanhos.
Neste texto, o Nexo explica como o arroto bovino pode prejudicar o meio ambiente e apresenta algumas alternativas em desenvolvimento para diminuir a liberação do metano pelo gado.
O processo digestivo de animais como vacas, ovelhas, búfalos e girafas é adaptado para metabolizar pasto e qualquer outro produto de origem vegetal. O estômago dessas espécies tem um compartimento chamado rúmen que é o principal responsável pela fermentação de alimentos vegetais. Conhecido como fermentação entérica, esse processo libera grandes quantidades de gases, incluindo o metano, (CH4).
“O metano é uma ineficiência do sistema e tem uma relação direta com a digestibilidade da dieta”, disse ao Nexo Sérgio Raposo, pesquisador da área de nutrição animal na Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária). “Quanto melhor a qualidade da dieta, menor é a porcentagem de metano que vai ser emitida por quilo de alimento ingerido pelo boi.”
Dos 600 milhões de toneladas de metano emitidos anualmente pelo mundo, cerca de 60% correspondem a ações antrópicas, o que inclui, por exemplo, a produção e distribuição de combustíveis fósseis. Destes, 32% vêm da fermentação entérica. Ou seja, 115 milhões de toneladas de CH4 são liberados só pelos ruminantes – principalmente pelo arroto dos animais.
21,8%
do total de gases de efeito estufa emitidos pelo Brasil em 2021 correspondem à fermentação entérica, de acordo com o SEEG (Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa)
Apesar de estar presente na atmosfera em menores quantidades do que o gás carbônico, o metano retém muito mais calor e, por isso, tem maior potencial de contribuir para o aquecimento do planeta. Pensando nisso, líderes mundiais estabeleceram o Acordo do Metano, na COP26, realizada em Glasgow, na Escócia, em 2021, com o objetivo de reduzir em 30% as emissões do gás até 2030.
A Nova Zelândia, por exemplo, divulgou em junho de 2022 uma medida que pretende taxar as emissões de metano no arroto de gado. A ação faz parte de um plano de combate ao aquecimento global e, se for concretizada, posicionaria o país como o primeiro no mundo a cobrar impostos sobre os gases de rebanhos.
Ao redor do mundo, empresas e cientistas têm desenvolvido tecnologias com potencial no sentido de reduzir a emissão do metano – mais especificamente em relação ao gado –, mas elas ainda enfrentam obstáculos para uma implementação ampliada. Abaixo, o Nexo apresenta três delas.
Uma das soluções com pesquisas mais avançadas aprofunda-se sobre os efeitos positivos da inclusão de algas vermelhas (especificamente as do gêneroAsparagopsis) na alimentação de bovinos. Dados indicam que elas contribuem para impedir a produção de metano durante a fermentação entérica.
Um estudo publicado em 2021 verificou que um grupo de 21 bovinos reduziu a liberação de metano em até 80% após se alimentarem com as algas junto à ração. Especialistas associam a diminuição do gás ao efeito inibitório dasAsparagopsis sobre uma enzima do sistema digestivo de ruminantes que contribui para a produção do metano, o que não provoca alterações na qualidade da carne.
Para Sérgio Raposo, os resultados positivos das pesquisas indicam que cedo ou tarde as algas devem entrar no mercado. A implementação desse aditivo à dieta bovina, porém, enfrentaria obstáculos porque seria necessário produzir as algas em larga escala. Mesmo assim, o potencial delas tem sido estudado para inspirar a criação de suplementos em laboratório, como o Bovaer da empresa holandesa DSM.
O aditivo Bovaer recebeu a primeira aprovação regulatória para comercialização no Brasil em setembro de 2021. Segundo um estudo da Unesp publicado em 2020, o produto foi capaz de reduzir as emissões de metano bovino em até 49% pelos impactos que causa nos microorganismos atuantes no rúmen.
O pesquisador da Embrapa reforça o potencial de redução de metano do Bovaer, mas chama a atenção para o pouco impacto do aditivo quanto à produtividade agropecuária. Ou seja, o produto ainda não demonstrou contribuições para aprimorar a produção de carne.
“Em tese, até poderia melhorar um pouco o desempenho, porque o metano é uma perda [do animal]; então, sem a perda, o boi ganharia um pouco mais [em produção de carne]. Mas é pouco efetivo”, justificou. “É um exemplo em que o crédito de carbono funcionaria, porque o produtor adotaria o Bovaer, e o aditivo o premiaria com o carbono que ele evita emitir”, disse Raposo.
Na Austrália, uma startup desenvolveu uma alternativa sintética às algas marinhas diante das dificuldades e alto custo de produção dos vegetais voltados à dieta bovina. A ideia foi imitar o efeito do bromofórmio, ativo capaz de inibir a atuação da enzima produtora do gás.
Segundo a empresa, os testes em laboratório demonstraram potencial de reduzir as emissões em mais de 95%, mas mais ensaios ainda precisam ser realizados nos próximos meses. Só depois, então, devem ser iniciados os processos regulatórios e os incentivos aos produtores.
Alguns cientistas, no entanto, chamam a atenção para os riscos do uso do bromofórmio, apontado como um dos produtos químicos que empobrecem a camada de ozônio.
Outra tecnologia que vem sendo desenvolvida é uma máscara que garante “filtrar” o metano emitido no arroto de bois. Sem propor alteração na dieta dos animais, a empresa britânica Zelp criou uma estrutura capaz de captar até 60% do gás liberado nas narinas bovinas e de transformá-lo em CO2 e vapor de água.
Além da redução do metano, a máscara oferece um monitoramento dos animais com dados sobre alimentação, reprodução e localização. “Talvez seja muito efetiva, mas colocar em prática é bem complicado. O tempo pode provar que estou enganado, mas é difícil acreditar que a máscara vai ser aplicável em larga escala no campo”, afirmou Raposo.
Movimentos que defendem os direitos dos animais criticam o produto, apontado por eles como mais um desconforto forçado por produtores agropecuários que sujeitam os bois a uma vida de maus-tratos.
Apesar dos resultados promissores de algumas pesquisas, alguns especialistas apontam que tentar diminuir a produção de metano em ruminantes ou limpar o gás em seu arroto não é lidar com a origem do problema. A pecuária ainda é fortemente associada às altas taxas de desmatamento. Só na Amazônia Legal, por exemplo, quase 75% das terras desmatadas dão lugar à atividade, de acordo com um relatório do projeto Amazônia 2030.
Professor do Programa de Planejamento Energético da UFRJ, Roberto Schaeffer encara o aumento da produtividade agropecuária e da qualidade do pasto como boas saídas para a redução das emissões de metano, mas aponta os hábitos alimentares do ser humano como centrais na discussão sobre os impactos da agropecuária para o planeta.
“Uma parte grande da produção agrícola hoje é para produzir grãos para alimentar animais”, disse ao Nexo. “Dada a ineficiência do animal, que está comendo uma proteína vegetal para virar proteína animal [e liberando metano], é muito mais eficiente o ser humano já comer direto uma proteína vegetal.”
Para o pesquisador, o meio ambiente não é o único motivo capaz de mobilizar a redução do consumo de carne. “Há vários estudos que mostram que, de fato, dietas alimentares com alto teor de carnes vermelhas causam uma série de problemas de saúde. Dá para justificar [pela saúde] por que as pessoas deveriam comer menos carne”, disse Schaeffer.
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