Expresso

A situação na terra Yanomami após 1 ano de emergência

Mariana Vick

13 de janeiro de 2024(atualizado 25/02/2024 às 22h10)

Crise sanitária e invasão de garimpeiros em território indígena gerou comoção nacional e internacional em 2023. Retorno de invasores meses após primeiras ações do governo provocou anúncio de novas medidas

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FOTO: Ueslei Marcelino/Reuters - 06.dez.2023Helicóptero verde pousa sobre área onde há um corpo d'água de cor lamacenta. Homens uniformizados estão do lado de fora, sobre o solo.

Agentes do Ibama participam de operação contra garimpo ilegal na terra indígena Yanomami (RR)

Completa-se um ano no dia 20 de janeiro desde que o governo federal decretou emergência na terra indígena Yanomami, em Roraima, para enfrentar uma crise humanitária agravada pela presença do garimpo ilegal. Depois da medida, o Executivo adotou ações emergenciais para expulsar os invasores. A situação da região, no entanto, continua crítica.

Demarcada em 1992, a terra Yanomami é o maior território indígena do  Brasil. Casos de malária e desnutrição grave revelados na região em 2023 geraram comoção nacional e internacional, além de mobilizações contra a mineração de ouro. A divulgação do retorno de garimpeiros e de novos casos de doença em 2024 levou o governo a anunciar novas medidas.

Neste texto, o Nexo lembra o que caracterizou a crise na terra indígena Yanomami em 2023 e o que o governo federal fez na época para enfrentá-la. Mostra também o que mudou desde então, quais desafios permanecem e quais são as ações do governo previstas para o ano de 2024. 

O que marcou a crise em 2023

O governo federal decretou emergência na terra Yanomami em 2023  depois de ter resgatado da região crianças em estado grave de saúde. Equipes do Executivo estavam no território desde o começo do ano para verificar denúncias divulgadas no fim de 2022 sobre uma crise sanitária local. Quadros de malária, desnutrição severa e infecção respiratória aguda acometiam bebês e idosos, entre outros grupos.

FOTO: Amanda Perobelli/Reuters - 27.jan.2023Adulto e criança indígena de aparência desnutrida em rede

Mais de 1.000 indígenas foram tirados do território naquela semana para não morrer, segundo o Ministério da Saúde. As causas do problema não eram novas. Dados informados em 2022 pela Secretaria Especial de Saúde Indígena à Agência Pública por meio da Lei de Acesso à Informação mostraram que 56,5% das crianças yanomami acompanhadas pelo poder público apresentavam quadro de desnutrição aguda já em 2021.

85

óbitos de crianças e adultos por desnutrição foram registrados na terra Yanomami entre 2016 e 2020, segundo dados do Ministério da Saúde fornecidos em 2022 ao portal G1 via Lei de Acesso à Informação 

Lideranças indígenas e profissionais de saúde atribuíam a situação à presença do garimpo ilegal. A atividade contamina rios e degrada a floresta, o que afeta a pesca, a caça e a disponibilidade de produtos consumidos pelos indígenas, que ficam sujeitos à desnutrição. Os invasores também são vetores da malária, que adoece as comunidades a ponto de não conseguirem comer ou buscar e cultivar comida.

20 mil

garimpeiros atuavam na terra Yanomami em 2023, segundo lideranças indígenas locais; presentes por décadas no território indígena, os invasores cresceram no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro 

Outros fatores apontados na época para a desnutrição na região foram a vulnerabilidade sanitária — marcada pela falta de oferta de água potável, de coleta de lixo e de saneamento nas aldeias — e a precariedade da assistência à saúde na terra Yanomami. Das 360 aldeias identificadas na área, apenas 78 tinham unidades básicas de saúde em operação no começo de 2022. Faltavam nos postos agentes de saúde, treinamento, equipamentos e alimentação.

O que aconteceu desde então

Uma comitiva de ministros e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva visitaram a terra Yanomami em janeiro de 2023. O governo federal mobilizou diferentes órgãos para enfrentar a crise humanitária na região. Diversas ações foram adotadas para combater a desnutrição, oferecer atendimento em saúde e remover garimpeiros do território.

  • 13 operações foram deflagradas pela Polícia Federal em 2023
  • 175 prisões em flagrante ocorreram
  • 114 mandados de busca e apreensão foram cumpridos
  • R$ 589 milhões foram apreendidos em bens
  • 387 investigações estão em andamento 

Parte dos problemas na terra indígena diminuiu depois de alguns meses. Mais de 80% dos garimpeiros que estavam no território saíram em julho de 2023, após um semestre das primeiras operações, segundo a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara. Enquanto alguns invasores deixaram a área livremente, outros foram expulsos. 

Com a saída, houve mudanças ambientais. O desmatamento associado ao garimpo caiu 95% na terra Yanomami em abril de 2023 em comparação com o mesmo mês no ano anterior, segundo dados de uma plataforma da Polícia Federal. Imagens de satélites da PF e das Forças Armadas mostraram ainda que a qualidade da água de rios como o Uraricoera melhorou após alguns meses.

FOTO: Amanda Perobelli/Reuters - 07.fev.2022Pessoa abre a mão para a câmera. Na palma da mão, há pequenas lascas de ouro. Não se vê o rosto da pessoa.

Garimpeiro manuseia ouro após, segundo ele, deixar terra indígena Yanomami, em Alto Alegre (RR)

As ações do governo, no entanto, diminuíram depois do primeiro semestre, e os avanços se desfizeram. Um relatório divulgado em agosto de 2023 por três organizações indígenas — Hutukara Associação Yanomami, Associação Wanasseduume Ye’kwana e Urihi Associação Yanomami — mostrou que o garimpo continuava ativo na época em áreas não identificadas nos monitoramentos oficiais. Quatro meses depois, o Ministério Público Federal reiterou que um grande número de invasores havia voltado.

O que caracteriza a situação atual

A crise na terra indígena voltou a repercutir em 2024 com a divulgação de novas imagens dos yanomami. Fotos produzidas pela associação Urihi e publicadas entre terça (9) e quarta-feira (10) pela Agência Pública e pelo portal G1 mostram que, além do garimpo, a crise de saúde persiste na região. Crianças visivelmente desnutridas aparecem nos registros, com peso abaixo do recomendado e ossos aparentes.

Os danos ambientais também voltaram. Vídeos e fotos obtidos pelo Nexo com Marcelo Moura, antropólogo do Museu Nacional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) que trabalha próximo dos Yanomami, mostram que a água de rios na terra indígena voltou a assumir a cor marrom-barro, associada ao garimpo:

FOTO: Marcelo MouraImagem aérea mostra ampla área verde e um rio com a cor lamacenta.

Rio afetado por garimpo na terra indígena Yanomami, em Roraima, em janeiro de 2024

Os vídeos foram produzidos por Fernando Palimitheli, na comunidade Palimiu, em Alto Alegre (RR). Em um deles, indígenas reunidos afirmam que garimpeiros circulam sem permissão no seu entorno e que o grupo tem destruído igarapés, a pescaria, o cotidiano e as possibilidades de trabalho. Para eles, o governo federal deve retomar as ações de desintrusão:

Para quem acompanha a situação, a impressão é de que pouco mudou desde 2023. Moura afirmou que, apesar das medidas adotadas no primeiro semestre do último ano, as transformações são lentas, tanto na repressão ao garimpo quanto no atendimento em saúde. Problemas de coordenação e logísticos impedem ações mais efetivas: 

“Estão tentando retomar [o atendimento em saúde], mas ainda com muita dificuldade para chegar em áreas que precisam, que são as afastadas da pista de pouso. Ainda temos unidades de saúde que também não estão funcionando porque foram destruídas e tomadas pelos garimpeiros. Equipes de saúde não vão a determinados lugares porque temem por sua segurança”

Marcelo Moura

antropólogo do Museu Nacional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) que trabalha próximo dos Yanomami, em entrevista ao Nexo

Priscilla Oliveira, ativista e pesquisadora da organização indigenista Survival International, concorda. Segundo ela, há mais assistência aos Yanomami no atual governo do que no do ex-presidente Jair Bolsonaro — que desmobilizou a política indigenista no Brasil de 2019 a 2022 —, mas as ações ainda são pontuais. Os impactos da falta de medidas mais efetivas podem ser profundos:

“A situação é de extrema gravidade. Se ela não for resolvida logo, as consequências a longo prazo para a vida e o modo de vida dos Yanomami podem ser desastrosas. Isso inclui impactos enormes na cultura e o futuro deles enquanto povo. Algumas comunidades foram tão devastadas presença dos garimpeiros que vão levar anos para se recuperar”

Priscilla Oliveira

ativista e pesquisadora da organização indigenista Survival   International, em entrevista ao Nexo 

Em declaração ao portal G1, a ministra Sônia Guajajara avaliou que houve muitas ações do governo em 2023 — “ações de saúde, operações para retirar garimpeiros do território, para garantir água potável, para garantir alimentos” —, mas admitiu que foram insuficientes. Para ela, não seria possível resolver a situação em um ano. Internamente, segundo o jornal Folha de S.Paulo. pessoas envolvidas nas operações na terra indígena diziam ao menos desde metade de 2023 que era necessária a presença permanente na região.

O que o governo planeja para 2024

Diante do retorno de garimpeiros à terra indígena, o governo federal anunciou na terça-feira (9) que pretende ter um grupo permanente em Roraima para combater as invasões. Segundo o ministro da Casa Civil, Rui Costa, será criada uma “casa do governo” no estado, com representantes de diferentes pastas. A Polícia Federal e as Forças Armadas devem ter presença contínua no território.

FOTO: Adriano Machado/Reuters - 1º.jul.2020Jovens e crianças indígenas interagem em uma área verde. Um deles olha para a câmera.

Indígenas yanomami, em Roraima

A medida representa uma mudança na forma de lidar com o problema.  “A gente sai de ações emergenciais para ações permanentes”, disse Sônia Guajajara ao portal G1 na quarta (10), durante visita a Roraima. O anúncio ocorreu após uma reunião de integrantes do primeiro escalão do governo com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva: 

“Vamos tratar a questão indígena e a questão dos Yanomami como uma questão de Estado, ou seja, nós vamos ter que fazer um esforço ainda maior, utilizar todo o poder que a máquina pública pode ter, porque não é possível que a gente possa perder uma guerra para garimpo ilegal, para madeireiro ilegal, para pessoas que estão fazendo coisas contra o que a lei determina”

Luiz Inácio Lula da Silva

presidente do Brasil, em reunião com ministros na terça-feira (9)

A presença de uma ação permanente na região era uma demanda do Ministério dos Povos Indígenas havia meses. Moura disse ao Nexo que a mudança é positiva, mas que a iniciativa ainda é incipiente — o governo deve dar detalhes em 30 dias. Além disso, o número de novas bases federais anunciadas na terra Yanomami — três — é pequeno, considerando a dimensão do território:

“As bases precisam se ampliar, somando-se às bases da Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas], que estão desestruturadas. Todos os corpos d’água, que são o foco da atividade garimpeira, deveriam ter bases. Há uma grande dificuldade do governo do estado de compreender o território Yanomami e dar uma resposta que dê conta das especifidades de cada região. Falta entender qual vai ser a capacidade real de dispersão [do plano] no território”

Marcelo Moura

antropólogo do Museu Nacional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) que trabalha próximo dos Yanomami, em entrevista ao Nexo

Oliveira também afirmou que, para que o plano dê certo, é preciso mais empenho das Forças Armadas. A atuação dos militares foi considerada insuficiente no primeiro ano de emergência. Em novembro, por exemplo, o Ministério da Defesa reconheceu que havia entregado aos indígenas até então apenas 34 mil das 50 mil cestas de alimentos solicitadas por outros órgãos do governo:

“Ter a presença de parte do governo federal lá [em Roraima] vai facilitar autorizações e decisões, e as propostas são bem-vindas, mas é necessário muito mais empenho. É necessário haver melhor distribuição de alimentos, garantir a segurança das equipes médicas para chegar a áreas remotas” 

Priscilla Oliveira

ativista e pesquisadora da organização indigenista Survival  International, em entrevista ao Nexo 

Questionado pelo Nexo, o Ministério da Defesa afirmou que, desde o início da força-tarefa do governo federal, “o apoio logístico das Forças Armadas resultou na distribuição de cerca de 766 toneladas de alimentos e materiais transportados, o que ultrapassou a marca de 36,6 mil cestas de alimentos distribuídas. Além disso, foram realizados 3.029 atendimentos médicos e 205 evacuações aeromédicas. Já nas ações de combate ao garimpo ilegal, os militares detiveram 165 suspeitos, entregues aos órgãos de segurança pública”. 

O que ainda é preciso ser feito

Para Oliveira, diversas ações precisam ser adotadas para garantir a proteção do território Yanomami. Parte dessas medidas, segundo ela, estão listadas em resolução publicada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em dezembro de 2023. O tribunal regional visitou a terra indígena no último ano e propôs, entre outras medidas: 

  • implementar um controle constante do espaço aéreo no território
  • instalar bloqueios e fiscalizar de forma permanente os rios
  • criar mecanismos de patrulhamento de rotina
  • investigar relatos de violência contra indígenas na região 
  • distribuir cestas de alimentos em comunidades remotas
  • reestruturar postos de saúde
  • reforçar a proteção dos chamados povos indígenas isolados

Moura afirmou que os principais gargalos são de logística. “Esse é o ponto que acabou fragilizando toda a resposta do governo [na terra Yanomami em 2023]. Precisamos de mais aeronaves e capacidade de circulação no território. Sem isso, não dá para combater o garimpo na floresta”, afirmou.

FOTO: Reprodução/Associação Urihi Yanomami Antonio AlvaradoUm indígena sendo carregado em uma maca de ferro por outros três homens. Ao fundo, um avião.

Resgate na terra Yanomami

Também é preciso lembrar que os problemas dos Yanomami não estão apenas no território indígena, segundo ele. Há situações de violência nas cidades de Roraima, como a capital, Boa Vista. “Muita gente que é removida [da terra indígena] para fazer tratamento de saúde não tem suporte, dorme na rua e não encontra espaços em que possa ser acolhida.”

As novas operações do governo ganharam um novo desafio. Em decisão na quarta (10), servidores federais que atuam na área ambiental decidiram suspender as atividades na terra Yanomami diante de impasses sobre a reestruturação das carreiras. Em comunicado, o conselho que representa o setor afirmou que serão mantidas apenas atividades internas, até que o governo resolva uma negociação iniciada em outubro. 

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